quarta-feira, maio 04, 2011

Algo que sem sal, um pouco aguada, essa coisa.


I

Urina e descarga. E olha em frente a parede do banheiro, coberta de agradáveis azulejos, e deixa estar o olhar. E deixa estar essa coisa, esse incômodo, coceira, essa dúvida, essas questões que vêm: o que fazia ali?, como viera parar naquele lugar, naquele tempo?, para onde ir depois?

Como se fosse seu aquele banheiro, e também estivesse sozinho, não ousou olhar mais à direita para confirmar o espelho, que estava ali, e, mais ainda, confirmar as dúvidas e não as rugas que circulavam seus olhos. Foi-se, venceu o corredor e sentou-se no sofá, quase acendendo qualquer coisa para fumar, mas... desde quando aquele vício? Não se lembrava. Desistiu. A cabeça jogada para trás, encostada no apoio do assento, e os olhos fechados deixaram sair os pensamentos em busca de lembranças e de respostas: uma canoa furada no mar, que não afunda, mas também não permanece se não lhe tiramos, aos sufocos, as águas de dentro para outro lugar.

Os olhos se abrem, ainda sem resposta alguma. Mas é isso, é assim que acabamos por viver a vida, essa canoa furada. O mar que se faz dentro dela nos ocupa. Nos esforçamos em não deixá-lo transbordar. Esquecemos de onde partimos, pois não vemos as direções que tomamos, preocupados em desaguá-lo. Os pés, firmes na madeira velha e podre do chão, nos enganam alguma segurança e, do mar que navegamos, ou naufragamos, rapidamente nos alheamos, cada vez mais, e mais ainda.


II

Observa e ouve. O silêncio que devagar toma corpo é amistoso aos pensamentos, antes tímidos, que agora saem em todas as direções possíveis. Andando pela casa, procurando algo a varrer, lâmpadas a trocar, plantas a regar, encontra apenas leves rastros de recordações que talvez lhe trouxessem alívio. Estão na geladeira, na caixa de música... mas nem na pilha de jornais antigos percebe algo que de algo lhe valha.


III

Dedução e raciocínio. Eis as melhores ferramentas para se viver a vida, caso sua vida seja uma canoa furada. Foi o que ele ouviu dizer em algum lugar.

Estava outra vez entre paredes, outra vez parede. Tão sólidas, seguras, confiáveis. Confortáveis. Ou não, o melhor e mais certo seria chamá-las de familiares. Habituais. Há tempos estão ali, obstáculos. Impedem. Impedem tudo. E ele permite.


IV

Tempos em tempos. É de tempos em tempos que a vida se mostra... que conseguimos enxergar a vida de forma tão nítida que nos alegra, ou nos confunde; que nos explica e atrapalha; são as vagas de onde borbulham o orgulho e, em outras ondas, o desespero.

Ele lembra daquela, talvez não a última, mas outra vez em que o tempo e a vida mostraram-se assim tão claros aos seus olhos. Não havia paredes e eram alegrias, era futuro e eram sonhos. Era caminho a ser seguido com passos que sabia passear. Era um passeio.

Mas a vida é uma canoa furada e, cuidando que ela não afunde, tomamos outras direções, inimagináveis, às quais nos habituamos.


V

O tempo se abriu, claro. A vida se mostrou, límpida. Mas não eram alegrias, era tudo aquilo do que a vida é feita. Não era futuro, era tudo aquilo do que o passado é feito. E os sonhos sempre foram e serão o que são.


VI

Sonhos e sonhos. E sonhos e sonhos e mais alguns. Ele tinha muitos. E eram bons. E eram sonhos que tomariam a vida inteira. É como se o mar fosse sonhos e todo o mar daquela canoa já tivesse desaguado. Todo o mar que ele desejava já passou por sua vida. E a vida é longa, muito maior que os sonhos. Tão longa que nos sobra tempo de voltar ao espelho e encontrar uma resposta, constatar uma verdade: ele já não sabe mais, mais nada. E nem rugas já tem.