sábado, outubro 20, 2007

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Reclamou do jeito que a olhei. Foi a primeira coisa que fez quando me encontrou. Não tive culpa e nem como evitar. Disse que era melhor não ficar tão nervosa e prestar mais atenção no que estava dizendo. Sim, meus olhos arregalaram naquele momento. O desejo ferveu em meu corpo, como fugir disso? Tive que confessar, ela nem tinha percebido. Tudo bem, que vá embora, não posso fazer nada. Desmentir tudo por conta de seus caprichos? Isso não. Afinal, não fui eu quem expôs aquelas fotos naquele muro do centro da cidade.

Um amigo me ligou. Estava ouvindo música e não quis atender. Apostei que ele não morreria tão cedo.

Todos aqui na cidade reclamam seus direitos. "Meus direitos, meus direitos", eles dizem, mas nem sabem de nada do que falam. Está bom demais, para eles, acolchoarem-se num pano quente após o dia duro de trabalho, desejando ter a certeza de que a noite passará e tudo continuará igual. Não pensam e nem percebem que nenhuma noite passa sã.

Os insanos ficam satisfeitos com suas tochas nas mãos. Usam-nas para ferir um pouco a noite.

Ela tentava dormir, estava ansiosa demais. Nas janelas dos prédios os senhores jogavam água e reclamavam do barulho que vinha da rua. Jovens drenavam garrafas na calçada enquanto dois trabalhadores colavam cartazes no muro.

Catártico, seria esta a palavra para jogar com os cartazes?

A cento e oitenta quilômetros por hora, uma alma chora na rodovia, mas não sabe o porquê. Sente pena dos filhos dos outros motoristas e decide chegar vivo em casa ou em qualquer lugar. Ele sabe que qualquer hora a gasolina acaba, as lágrimas secam, o furor passa. Queria um pouco mais de combustível pra respirar, mesmo que fosse adulterado.

Tentei me convencer de que não eram meus olhos, que tudo era daquele mesmo jeito. Consegui, não eram meus olhos.

Pensei nos homens que colavam os cartazes, nas fotos, no baixo ordenado que receberiam.

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Quando acordei a pequena fresta de luz que entrava pela janela lembrou que era domingo. Senti pena dos filhos dos motoristas, pois seus pais tinham mais o que fazer. Senti medo de todas as crianças, imaginando o que se tornariam quando crescessem.

A empregada tocou o interfone e disse que era hora de lavar os lençóis. Medi meu corpo e calculei a possibilidade de entrar no cesto de roupas sujas. Lembrei que não eram panos meus e que estava num hotel. Deixei as chaves na recepção e saí.

A história das fotos mexeu mesmo com seus nervos; o jeito que andava demonstrava isso claramente. Evitei encontrá-la e entrei num comércio antes que nos cruzássemos. Provavelmente o recepcionista diria que eu acabara de sair. Ela certamente perguntaria se tinha levado meus pertences. Ele diria que não. A garota das fotos correria então ao lugar de sempre, mas eu não estaria por lá.

Os filhos dos motoristas estão em todos os lugares. Não parecem tão coitados, assim de perto. Parecem jovens que gritam com garrafas nas mãos. Deixei de sentir pena deles. Havia uma criança dessas no banheiro, sozinha, caída e vomitando o pouco de noite que passara. Não devia fazer diferença pra ninguém. Mais tarde voltou aos amigos. Sorridente e empolgado, contou todas as aventuras que viveu no banheiro. Desde o vômito até o cara que passou por cima dele sem dar atenção.

As gentes da cidade têm todos os direitos. Miram os olhos no próprio umbigo e ali até enxergam o universo, como dizem por aí. Prefiro observá-las; o jeito como se decompõem com o tempo sem perceber...

Lembro das fotos que se apagarão em uma semana chuvosa. Gostaria de ter evitado, mas estávamos todos ali. Os senhores jogando água pelas janelas, os jovens, os trabalhadores que colavam os cartazes e eu apenas atravessava a rua, não pude evitar. Também nunca apreciei a promiscuidade desses ares que respiramos por aqui, mas como fugir disso?

A duzentos e vinte quilômetros por hora engatilhei minha pistola e dei um tiro no vácuo; o volante do carro solto e uma garrafa entre as pernas. Tentei pensar numa explicação do porquê fazia aquilo, mas não havia resposta, apenas me sentia melhor.

Aposto que existe, neste momento, alguma garota, com seus menos de vinte, chorando em seu quarto por algum amor que nunca existiu; e que todos os garotos se vangloriam diante dos amigos, mesmo que não tivessem satisfeito a mulher. Acredito que os senhores só queriam mesmo era dormir, mas não entendo porque escolheram um apartamento justamente naquela região. Também não entendo como conseguem tantos trabalhadores viverem com tão baixo ordenado. Não sinto nada especial por nada disso, na verdade. Apenas penso que talvez não fossem mais do que simples fotografias.

A recepção do hotel trocou de turno. A nova recepcionista é muda. A garota das fotos senta na calçada em frente, acende um cigarro e observa, no fim da rua, a esquina e o cruzamento com a avenida, reavivando a esperança a cada vulto que aparece na madrugada.

A cento e oitenta batimentos cardíacos por minuto, já se está muito longe e não há mais combustível para voltar.

3 Comments:

Blogger Alessandra Queiroz said...

Este comentário foi removido pelo autor.

terça-feira, outubro 23, 2007 12:50:00 AM  
Blogger Alessandra Queiroz said...

Este comentário foi removido pelo autor.

terça-feira, outubro 23, 2007 12:51:00 AM  
Blogger Alessandra Queiroz said...

Meu Amor,
Na madrugada a dentro me saboreio de suas maravilhosas palavras já que não posso ouvi-las neste momento ao pé do ouvido!

Texto repleto de inconsciente!

biseaus

Sempre Minha

terça-feira, outubro 23, 2007 12:51:00 AM  

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