segunda-feira, junho 20, 2011

Rock n´Roll, muthafuckers!!!


Existem amizades impossíveis de se descrever. Às vezes impossíveis até de se entender completamente como acontecem. Só nos resta saber que acontecem e aproveitá-las ao máximo.

Esse cara proporcionou uma amizade desse tipo, a mim e a todos que souberam acompanhar a avidez com que ele vivia a vida.

Além de amigo, foi professor, parceiro de bar e companheiro de olhar a vida da maneira mais bonita possível.

Ele era um poeta dos gritos: "Rock ´n´ Roll, muthafuckers!!!" Mas também tinha aquela voz que embargava, de uma forma bonita, toda vez que exagerava nas doses de poesia, que tanto precisava para passar os dias.

A falta que faz um último olá, um derradeiro adeus, é forte, e dói, há tanto tempo não nos víamos... mas não é mais forte do que as lembranças de todas as alegrias que tivemos nesses anos todos, tão poucos. Então, é com um belo sorriso banhado em lágrimas que tento ficcionar uma despedida. Gostaria de ter a certeza de que você ainda pode ouvir. Estaria agora me xingando por todo esse choro... bom, não sei se está ouvindo, mas deixo aqui o recado: vamos bebê-lo, hoje, no lugar de sempre, com as pessoas que estarão pra sempre, naquele horário de sempre. Só não se atrase, senão a gente fica preocupado, seu velho!

quarta-feira, maio 04, 2011

Algo que sem sal, um pouco aguada, essa coisa.


I

Urina e descarga. E olha em frente a parede do banheiro, coberta de agradáveis azulejos, e deixa estar o olhar. E deixa estar essa coisa, esse incômodo, coceira, essa dúvida, essas questões que vêm: o que fazia ali?, como viera parar naquele lugar, naquele tempo?, para onde ir depois?

Como se fosse seu aquele banheiro, e também estivesse sozinho, não ousou olhar mais à direita para confirmar o espelho, que estava ali, e, mais ainda, confirmar as dúvidas e não as rugas que circulavam seus olhos. Foi-se, venceu o corredor e sentou-se no sofá, quase acendendo qualquer coisa para fumar, mas... desde quando aquele vício? Não se lembrava. Desistiu. A cabeça jogada para trás, encostada no apoio do assento, e os olhos fechados deixaram sair os pensamentos em busca de lembranças e de respostas: uma canoa furada no mar, que não afunda, mas também não permanece se não lhe tiramos, aos sufocos, as águas de dentro para outro lugar.

Os olhos se abrem, ainda sem resposta alguma. Mas é isso, é assim que acabamos por viver a vida, essa canoa furada. O mar que se faz dentro dela nos ocupa. Nos esforçamos em não deixá-lo transbordar. Esquecemos de onde partimos, pois não vemos as direções que tomamos, preocupados em desaguá-lo. Os pés, firmes na madeira velha e podre do chão, nos enganam alguma segurança e, do mar que navegamos, ou naufragamos, rapidamente nos alheamos, cada vez mais, e mais ainda.


II

Observa e ouve. O silêncio que devagar toma corpo é amistoso aos pensamentos, antes tímidos, que agora saem em todas as direções possíveis. Andando pela casa, procurando algo a varrer, lâmpadas a trocar, plantas a regar, encontra apenas leves rastros de recordações que talvez lhe trouxessem alívio. Estão na geladeira, na caixa de música... mas nem na pilha de jornais antigos percebe algo que de algo lhe valha.


III

Dedução e raciocínio. Eis as melhores ferramentas para se viver a vida, caso sua vida seja uma canoa furada. Foi o que ele ouviu dizer em algum lugar.

Estava outra vez entre paredes, outra vez parede. Tão sólidas, seguras, confiáveis. Confortáveis. Ou não, o melhor e mais certo seria chamá-las de familiares. Habituais. Há tempos estão ali, obstáculos. Impedem. Impedem tudo. E ele permite.


IV

Tempos em tempos. É de tempos em tempos que a vida se mostra... que conseguimos enxergar a vida de forma tão nítida que nos alegra, ou nos confunde; que nos explica e atrapalha; são as vagas de onde borbulham o orgulho e, em outras ondas, o desespero.

Ele lembra daquela, talvez não a última, mas outra vez em que o tempo e a vida mostraram-se assim tão claros aos seus olhos. Não havia paredes e eram alegrias, era futuro e eram sonhos. Era caminho a ser seguido com passos que sabia passear. Era um passeio.

Mas a vida é uma canoa furada e, cuidando que ela não afunde, tomamos outras direções, inimagináveis, às quais nos habituamos.


V

O tempo se abriu, claro. A vida se mostrou, límpida. Mas não eram alegrias, era tudo aquilo do que a vida é feita. Não era futuro, era tudo aquilo do que o passado é feito. E os sonhos sempre foram e serão o que são.


VI

Sonhos e sonhos. E sonhos e sonhos e mais alguns. Ele tinha muitos. E eram bons. E eram sonhos que tomariam a vida inteira. É como se o mar fosse sonhos e todo o mar daquela canoa já tivesse desaguado. Todo o mar que ele desejava já passou por sua vida. E a vida é longa, muito maior que os sonhos. Tão longa que nos sobra tempo de voltar ao espelho e encontrar uma resposta, constatar uma verdade: ele já não sabe mais, mais nada. E nem rugas já tem.

segunda-feira, abril 04, 2011

...


os anjos têm essa mania, essa necessidade
que sempre que anoitece
ou sempre que adormecem
vão embora
deixam uma última palavra
vão embora pra casa
um último pensar
e nem percebemos, fomos embora

mas os anjos também têm essa mania, quase necessidade
que sempre que amanhece
ou que os olhos abrem
voltam
uma primeira palavra
voltam pra casa
um pensar atrapalhado
e, confusos, nem percebemos
fomos embora outra vez

a vida toma conta da vida

e anjos, com a mania de serem alheios
apenas observam
e sentem saudades
de ir embora e de voltar
de todos os pensamentos
de todas as palavras

não é mania
é vício, essa saudade
essas saudades
deles mesmos
de nós mesmos

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

pequeno



Percebi desde o início, desde pequeno, as porções menores dos padrões da vida. Não cobiçava o doce antes da promessa, contentava-me com os papéis de bala que restaram da última festa, jogados pelo chão da rua ou atrás de algum sofá. Quando desobedecia, não era por ser criança, e quando obedecia, não era por não o ser. É que as palavras todas, desde quando me lembro delas, sempre tiveram significado real e efetivo em meus ouvidos e em minha mente. Não só as palavras. Quando falavam de dinheiro, por exemplo – e as pessoas, em geral, só falam de dinheiro quando ele é dívida ou quando é milhares ou milhões – eu não conseguia pensar em mais que o som de algumas moedas, chocando-se umas noutras, num pequeno saco de pano: a imagem que guardarei sobre o dinheiro até não sei quando mais. Quando questionavam a distância de tal cidade ou tal país, olhava para meus pés e pernas e tentava imaginar a distância exata do primeiro metro. Foi sempre assim, atalhado no que era menor, no que era essência e no que é vital em qualquer ocasião. Mas eram pequeníssimas partes que não serviam para construir nenhum todo, nada grande. Cercava sempre o ínfimo, o diminuto, e pulava de um pra outro e pra outro, de minuto em minuto, sem deixar nada construído atrás do caminho sinuoso que caminhava.

Nada grande. Nunca acreditei em nada grande, além de algumas mentiras. Atentei-me ao pequeno:

Uma lâmina da luz solar divide a sala por causa da cortina quase que fechada, e eu acho lindo. E a poeira, poeirando por ali, no ar, atravessando a linha de luz que divisava aquela sala, ou aquele mundo, me ensinou que a vida pode proporcionar coisas belas pelas quais vale a pena sofrer, ou viver, como é comum de se dizer.

Formigas, no chão do parque ou na pia de sua cozinha, sempre nos ensinaram como conseguir o que queremos, ou como “atingirmos nossas metas”, como é comum de se dizer. E a lição nunca foi a de trabalharmos e trabalharmos e trabalharmos demais. A ideia é trabalharmos o suficiente, dividindo esforços e dividindo as recompensas.

Os sorrisos são tão pequenos no mundo cinza em que vivo, que acabei me apaixonando por eles também. E é sobre sorrisos que digo, não sobre os risos e gargalhadas desesperados que preenchem todo a grande falta de alegria ou sobra de insatisfação que, não há como negar, estão por toda a parte.

...

Pequeno que era, imaginava que não pudesse legar nada além de meu reflexo, ínfimo. Mas agora, há um minuto, olhei pra trás e percebi que aquele caminho sinuoso tornou-se estrada. Todas as pequenas coisas que colecionava tornaram-se uma só coisa enorme. Uma gigantesca rodovia que, com todas as suas curvas, confunde-se ao horizonte. Que vem de lá de longe a um destino único, que sou eu. O pequeno fez-se grande.

Mas, ainda assim, é muito pouco. Conheci aquele ditado que diz, que é assim: que de grão em grão... na verdade, meu papo parece furado.

E isso quer dizer que todas as pequenas coisas que me maravilham não me bastam. Apenas maravilharam-me e continuarão a fazê-lo, um sorriso, uma formiga, um mínimo de luz. Vou deixando-as pelo caminho. É muito pouco. Parece papo furado, mas não é. Na verdade, mesmo, é grande!

terça-feira, dezembro 28, 2010

A conversa entre o maior idiota deste lado do planeta e o ridículo humano.


Testemunhei a conversa entre o maior idiota deste lado do planeta e o ridículo humano...

E, quer saber?

Os três falavam sério!

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Impuro


Sou aquele que não vale a pena. Sou fraco. Sou nulo.
Aquele que não tem coragem de deixar de ser criança.
Que não tem coragem para mentir.
E escandaliza com tamanha covardia de sempre dizer a verdade.
Sou alguém que não economiza com drogas, como cerveja, para não lembrar.
Um alguém que não se recorda das coisas mais importantes.
Não sei o nome dos automóveis ou motocicletas.
Não sei escalar um time de futebol, ou de qualquer coisa.
Não tenho explicações para nada do que fazem acontecer nos jornais.
Não tenho a certeza do macho e nem a esperteza da fêmea.
Sou aquele que estuda e não aprende.
Que não sabe repetir palavras de ordem.
Apenas me calo.
Sou aquele que apenas pensa e acredita no que pensa.
Sem nunca justificar o que pensa e nem querer convencer ninguém do que pensa.
Que acredita que as pessoas são boas.
E que acredita que as pessoas são más.
E que só acredita nessas coisas porque são as palavras que as pessoas usam.
Sou o que acredita haver algo além dessa dualidade ou de qualquer mescla que se faça dessas ideias.
Sou meio assim...
Plenamente meio.
Sem convicções, além de algumas poucas besteiras.
Sem certezas.
Sou uma dúvida eterna e mais forte a cada dúvida.
Impuro.
Sou impuro para este universo de saber-se tudo.
Sou impuro.
Mas não tenho muita certeza sobre isso.

sexta-feira, novembro 05, 2010

Dia dos mortos, São Paulo, 2010


Levantamos!
Andando pelas ruas do centro de São Paulo, encontrei essas pessoas.
Nada muito diferente do cotidiano.

"Quando não houver mais espaço no inferno para as almas perdidas, os mortos caminharão sobre a terra.", diz uma antiga citação, que não me lembro se é bíblica ou *cinéfila.

Creio que há tempos o inferno está cheio...

Para as fotos, clique aqui: Dia dos Mortos

Rafael Mafra

segunda-feira, outubro 25, 2010

Difuso


Devagar o silêncio da noite vai embora e dá espaço ao som do dia, um som que não se escuta. Tardo em abrir os olhos, tentando conservar as imagens dos últimos pesadelos. Tentando consertar o que tinha dado errado e eliminar os demônios que apareciam. É impossível. Eram demônios, mas não eram pesadelos.

Pela difusa claridade que entra pela janela é possível adivinhar o azul pálido do céu de um dia frio. Procuro na atmosfera do quarto algum resquício de sono, mas há apenas cansaço, além do vazio. Seria coragem o que procurava, para me levantar?

Há tempos estou preso aqui. Minhas palavras morrem nas paredes, pois as vozes de corpos sem espírito não produzem eco algum. E também não ouço nada, tão surdo quanto as paredes. Concordamos, em silêncio, que o silêncio é o único acordo possível.

Antes do pé esquerdo tocar o chão da rua, os olhos se fecham novamente e o dia passa. Passa como se fosse uma breve eternidade, um broto que não cresce e não gera flores que nunca desabrochariam, um tempo que não conta. Só não passa como os pesadelos passam, deles podemos acordar e fugir dos demônios que aparecem. Durante o dia não. Somos nós os próprios demônios!


Ps.: Este texto é incompleto. Ainda não me lembro como terminam os sonhos.

segunda-feira, outubro 18, 2010

As lágrimas que caem da chuva.


1 - As lágrimas que caem da chuva.
2 - Não, não é isso.
1 - É isso sim. As lágrimas que caem da chuva.
2 - Não, não é!
1 - Claro que é isso.
2 - Não são lágrimas, são gotas.
1 - Gotas o quê?
2 - Que caem da chuva. São gotas que caem da chuva.
1 - É verdade, são gotas.
2 - Tá vendo?
1 - É que eu confundi meu rosto com o céu.
2 - Seu rosto é azul?
1 - Não, mas escorre tanta gota que parece chuva.

sexta-feira, julho 23, 2010

Janelas que dão pra dentro.


Vivo nessa casa, que tem as janelas que dão pra dentro. E ainda quase não compreendo, como sempre, aquelas imagens que aquela avó sempre dizia: que é só numa janela que todos os horizontes do mundo podem passar; que só numa janela é que chovem todas as chuvas; que só numa janela é que a vida, um dia enfim, se vai de persianas.

E eu, nessa casa de janelas que dão pra dentro, sufoco-me no ruído que volta, engasgo-me na vontade que fica e estranho-me num espelho que não há.

Nas janelas que não dão pra nada, nada existe; nas que dão pra dentro, um pouco menos; nas janelas de algum horizonte, descobri que são mentira.

quarta-feira, março 17, 2010

De sorrisos inquietos e disfarçados.


Chora. Ela chora. Não sabe exatamente o motivo. Apenas chora, e sente que, sim, tem um belo motivo pra chorar tanto, embora não consiga esboçar nenhuma imediata razão para isso. Apenas chora.

Pensa. Ela pensa. Apenas pensa e tenta imaginar algo que explicasse aquelas lágrimas para imaginários amigos, amores ou estranhos que estivessem curiosos e preocupados com toda aquela água. Apenas sonha, enquanto chora.

Sabe. E ela sabe que não há razões e nem motivos que provoquem ou expliquem aquele balde, aquele mar, essas lágrimas. E, pena, também sabe que não há amigos, amores ou estranhos por perto, ninguém que queira entender ou enganar que compreende tudo aquilo. Ela está só.

Só. Ela está só. E pensa como é ridículo chorar quando se está só. Sabe que o choro é algo para se compartilhar. É necessário chorar junto, ou ao menos ter plateia. Sabe que o choro solitário é sinal de fraqueza ou desespero, que são coisas diferentes. A fraqueza logo passa, basta forçar alguma força e ela, o choro, a fraqueza, torna-se besteira. O desespero não. Esse desespero não!

Não. Esse desespero não vai embora. É como um coração batendo, como um piscar de olhos que sempre vem, mesmo quando não se quer, e, se não vem, arde. E ela ri disso. O riso é a reação mais intrigante provocada pelos desesperos.

Ri. Ri muito disso tudo, porque sabe que são coisas provisórias, que logo passam. Assim como olhos batendo ou corações piscando, passam, sempre passam. Sempre passam.

Sorri. Ela sorri. Não sabe exatamente o motivo. Apenas sorri, e sente que tem um belo motivo para sorrir tanto, embora não consiga, durante o sorriso, esboçar nenhuma imediata razão para isso. Apenas sorri, com um leve olhar amargurado de sabe-se lá o quê.

segunda-feira, dezembro 28, 2009

Lembrança imagem


A primeira lembrança que tenho, quando me esforço pra isso, tem um cheiro, um certo odor de ambiente fechado, quase mofo. Porém, diferente de mofo, esse ambiente também traz ares de bons cuidados. Nem as salas e nem as cortinas eram assim já tão velhas, mas creio que as infâncias impõem essa atmosfera de passado em cada lembrança que capturam.

A janela fechada, o absoluto silêncio, a luz cinza e úmida de um dia útil desperdiçado nas contemplações de uma pequena criança.

Quando o silêncio era tanto e era possível respirar tais momentos, minha admiração era tamanha que a descrição ou tradução mais exata desse estado de espírito seria algo como um inexplicável e seco nó na garganta.

Paralisado, olhava para as paredes, para o teto, para as pequeníssimas partículas de poeira que desapareciam e tornavam a aparecer, suspensas no ar quase quieto que pouco ventava frente ao meu rosto; e observava os desenhos das árvores, pintadas em verde-musgo sobre a base de pano grosso e pardo que formava as cortinas da sala.

Contemplava todo esse mundo de pequenas sensações e tentava compreender a grandiosidade daquilo tudo; onde estaria toda a importância que se escondia ali, que me abraçava por completo sem tocar, sem se mostrar? Eu sabia que estava ali, que era fácil, mas ainda não tinha capacidade suficiente para entender. Hoje, muito e muito tempo depois, sei que estava lá, que é fácil, mas ainda não a encontro. Só sei.

Essa, a minha primeira lembrança, sempre me faz pensar no quão pouco posso saber. Penso nisso, e lembro do quão pouco ainda sei.

Do primeiro mistério da minha vida, ainda não sei a solução. Dali pra diante, foram todos outros mistérios tão complexos ou mais. E penso que talvez esteja naquela primeira lembrança a chave daquele próprio mistério e a de todos os outros, a peça que faltava no quebra-cabeça, ou a que nunca existiu.

quarta-feira, agosto 19, 2009

Porque a miséria está à mesa... ainda!

Por faltar tempo e tempo e inspiração pra escrever qualquer coisa, deixo aqui algo que deveria estar já tem um tempo.

É o texto do sobre a atual peça da : Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação Paraíso.




Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação Paraíso

Densidade.

Quando penso no espetáculo, é a primeira qualidade que me vem à mente. Sim, porque Terror e Miséria... é sobretudo densa. Porque a realidade, se você sai do mundinho de TV e de tudo que a mídia dominante impõe, é isto. E também surreal. A melhor definição que se pode ter do Brasil em duas palavras: "real" e "surreal".

E é isto que nos oferece a Cia. Antropofágica em seu novo espetáculo. Cada vez mais ácidos. E não podia ser de outro modo. Porque as relações de poder, desde o período colonial, nesta terra, sempre foram brutais. Não é exatamente o que se sabe dos livros oficiais de escola. Mas quem sabe, sabe. Ou não imagina, ainda que pense que sabe, da missa um terço. E se delicia com a desgraça. A própria desgraça - o veneno que é a realidade, tudo o que nos corrói os interiores. Deliciosamente.

Muito está ali, nunca de um modo linear: a chegada lusitana - melhor dizendo, da escória lusitana; como se deram as primeiras relações com os nativos do novo mundo - estupro mental, espiritual e físico; a figura da igreja; mitos e símbolos expostos ao escárnio; a [falsa] inclusão social; a tragédia da (des)educação; as decisões políticas; o futebol; a influência externa. Há uma alternância de "climas". Pode ser uma alegria sádica de desnudar a alma de uma nação que se construiu a partir de seus vícios. Pode ser a sombria hecatombe, a miséria de existir em tal contexto.

Num dado momento, o público é chamado a participar: como num reality show, tem de decidir quem será "salvo". Num vídeo, transeuntes são questionados sobre a liberdade. As respostas são limitadas. O populacho se embaraça. A visão de liberdade é sempre a partir de um ângulo pobre. Noutro vídeo, uma apresentadora infantil de programas infantis canta o índio brasileiro. Quis rir. Ou chorar seria mais apropriado?

Noutro instante, Joaquim Silvério dos Reis, o traidor, surge expondo as vísceras da Inconfidência Mineira e também nossa ignorância crônica. Zé Carioca morre e é condenado ao inferno. E há sempre uma cartomante de palavras esperançosas. Afinal, como dizia aquela campanha, o brasileiro não desiste nunca.

O trabalho dos músicos tem de ser ressaltado, também, pois não se poderia imaginar o espetáculo sem a intervenção musical consistente que já é característica da Cia. Neste momento mesmo, em que digito estas linhas, parte da trilha toca em minha mente.

Se em outras ocasiões, esses antropofágicos foram buscar referências na tragédia grega, nos contos de fada ou no cinema de Buñuel, agora é diferente. A peça é fruto de um trabalho árduo em que as referências surgem do cotidiano e de uma história nada gloriosa.

A visão de paraíso sucumbe em festa. Horror em progresso. Quero vê-los de novo, antes que termine a temporada, em 27 de setembro. E penso que muito mais gente deveria vê-los.

Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação Paraíso

Ficha Técnica
Dramaturgia: Cia. Antropofágica
Roteiro e direção: Thiago Reis Vasconcelos
Direção musical: Lucas Vasconcelos
Músicos: Bruno Miotto (bateria), Bruno Motta (violão), Frederico César (clarinete) e Lucas Vasconcelos (piano e acordeon)
Elenco: Alessandra Queiroz, Andrews Michel, Clayton Lima, Daniela Leite, Danilo Santos, Fabi Ribeiro, Flávia Ulhôa, Gilberto Alves, Haroldo Stein, Martha Guijarro, Raphael Gracioli, Renata Adrianna, Ruth Melchior, Thiago Calixto, Valter Paulini.

Local: Saibam mais aqui.

Beijos e abraços, povo vicioso de uma nação viciosa!



Preços: R$ 5,00 (sexta) e R$ 10,00 (sábado e domingo).
Datas: 24 de julho a 27 de setembro de 2009.
Horários: Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 19h.

domingo, agosto 09, 2009

Paraíso


1 – É um lugar estranho...
2 – É? Por quê?
1 - Não sei se sei dizer. As pessoas que vivem por lá têm estranhos desejos e um incoerente orgulho de serem tudo aquilo que, parece-me, na verdade detestam.
2 –Como se chamam? Como são?
1 – São Pedros, Josés, Marias, Joões. São bobos, corintianos ou flamenguistas. São pobres soberbos, e os ricos conseguem sempre comprar alguma humildade. Uma imensa maioria é desnutrida de carne, de conhecimento, de cultura, de plena liberdade, de saúde, e são sempre furtados às oportunidades de melhoria de vida. Porém, a imensa minoria que resta serve para equilibrar a balança.
2 – E vivem todos nesse mesmo lugar? Não é incoerente? Vivem em paz?
1 – Sim, todos no mesmo lugar, chamam-se de brasileiros. É incoerente, sim, que vivam todos, assim tão diferentes, nesse mesmo lugar; ou ao menos que acreditem que vivam todos juntos. E não é exatamente em paz que vivem, é outra coisa.
2 – Que coisa?
1 – já sentiu dor alguma vez?
2 - Sim, já.
1 – É mais ou menos isso, uma dor. É como quando se sente uma dor e lhe aplicam uma anestesia. Não fosse isso, a dor continuaria, a causa permanece. É quase isso o que têm parecido com paz, um anestésico.
2 – E por que não atacam diretamente a causa em si?
1 – Eles não sabem.
2 – Não sabem resolver o problema?
1 – Nem conhecem os problemas.
2 – Não conhecem?
1 - Pensam que sim, mas não. Quero dizer, alguns sabem sim quais são os problemas e têm até diversas idéias de como resolvê-los.
2 – Não é de todo mal, esses alguns podem compartilhar suas idéias com os demais.
1 – Não é assim tão fácil.
2 – Mas se soa idéias para acabar com a causa da dor...
1 – É que para lutar contra a dor é preciso senti-la, e são poucos os dispostos a abrir mão dos anestésicos.
2 – Então não é tão fácil mesmo.
1 – Não, não é. Mas creio que não seja problema tão grande. Eles se amam.
2 – Mesmo com todas as diferenças?
1 – Mesmo assim. Aqueles poucos, é claro, estão satisfeitos em manter a mesma e melhor situação possível para o próprio grupo. Os outros, por incrível que pareça, chegam até a sentir orgulho por terem sofrido tanto a vida inteira e por terem criado seus filhos de forma que possam perpertuar seus valores; valores construídos como subterfúgios ao sofrimento. Eu disse que era um lugar estranho.
2 – Muito estranho.
1 – Mas está tudo bem. Fica tudo bem para eles se no meio disso tudo aparecer na televisão algum outro brasileiro com o qual se orgulhar. Não importa se esse outro brasileiro é campeão mundial de retórica ou se ele apenas sabe chutar um coco. Se um deles morre e se torna notícia internacional, então, é uma comoção geral.
2 – Esse é o caso dos anestésicos...
1 – Parte pequeníssima do caso.
2 – Muito estranho mesmo.
1 – Eu disse.
2 – E as praias de lá?
1 – Ah, rapaz, são lindas! Cada mulherão! Aquele lugar é um paraíso!!!

sexta-feira, junho 12, 2009

Flora e Cântaro


1 – Oi.
2 – Oi.
1 – Tudo bem?
2 – Tudo. E você, tá bem?
1 – É, tô.
2 – Então tá bom.
1 – O que está fazendo aqui?
2 – Aqui? Ou o que estou fazendo?
1 – O que está fazendo?
2 – Poderia ser em qualquer lugar.
1 – É, poderia.
2 – Tá vendo?
1 – O quê?
2 – Percebe que poderia ser em qualquer lugar o que estou fazendo?
1 – Não.
2 – Não?
1 – Não, não percebo.
2 – E por que não?
1 – Não sei o que está fazendo.
2 – Ah, é mesmo...
1 – E então, o que está fazendo?
2 – Estou dando adeus à vida.
1 – Adeus à vida?
2 – Sim, à minha vida.
1 – E por que está dando adeus à sua vida?
2 – Por que está na hora.
1 – Você vai se matar?
2 – Não! Mas que bobagem!
1 – Então você sente que vai morrer?
2 – Não. Não é isso.
1 – Então o que é? Por que dar adeus à vida assim, sem mais?
2 – Estou dando adeus a uma vida para viver outra.
1 – E isso é possível?
2 – Claro que é.
1 – Sem precisar morrer?
2 – Exatamente.
1 – Não entendo. Ah, muito prazer, meu nome é Flora.
2 – Prazer, o meu é Cântaro.
1 – Cântaro?
2 – Isso.
1 – Nome estranho.
2 – Eu sei.
1 – Mas, então, como é que se faz isso?
2 – Isso o quê?
1 – Dar adeus à vida, sem precisar morrer.
2 – É fácil.
1 – Sério?
2 – Sério.
1 – E como é?
2 – É fácil. É só ficar assim, parado, numa noite fria, daí você acende um cigarro e fica mirando os olhos num ponto cego ao longe, de repente você percebe.
1 – Ah, é? Vou tentar.
2 – Pode tentar.
1 – Já estou.
2 – Mas não é assim.
1 – Não?
2 – Não.
1 – Mas não foi assim que você disse?
2 – Sim, foi assim. Mas para dar adeus à vida, primeiro é necessário querer dar adeus.
1 – Mas foi o que eu fiz.
2 – Não, você não fez porque você não quer dar adeus à vida.
1 – Não?
2 – Não.
1 – Como não? Como é que você sabe.
2 – Ora, está na sua cara, Flora.
1 – Está?
2 – Está. Aliás, nesse nosso caso, não é nem na cara que está, nem precisa chegar a tanto.
1 – Onde está então?
2 – Já ouviu falar de uns papos? Esses que dizem que todos nós somos apenas idéias, que não existimos realmente e tudo o que existe é fruto da nossa imaginação, e que a única coisa que possuímos é uma essência eterna e imutável?
1 – Sim, já ouvi falar sobre isso.
2 – Então, o seu nome, que é a sua essência, deixa claro que você não quer dizer adeus à sua vida. Flora, assim como todas as plantas, você vive, revive, sobrevive e insiste sempre em ressuscitar na mesma existência. Não que seja teimosa ou orgulhosa, mas você vive todas as vidas nessa única que você tem e mantém.
1 – E você?
2 – Eu não sou Flora.
1 – Mas o seu nome, que é a sua essência, o que significa.
2 – Meu nome?
1 – Sim.
2 – Cântaro?
1 – Esse mesmo. Tem algum outro mais?
2 – Tento ter outro nome, mas não consigo.
1 – Por que ter outro nome?
2 – Cântaro é um recipiente. Ele carrega água ou carrega vinho. A água carrega vida e o vinho carrega prazer. Mas, quando a vida não quer mais viver, ou quando o prazer é cansativo, o cântaro seca. E quando um cântaro seca, ele não tem mais serventia. E quando não tem mais serventia, dizem que é ruim, pois não quebra. E quando dizem que não quebra é como se quisessem que o próprio cântaro dissesse adeus à vida.
1 – É por isso que tenta ter outro nome?
2 – Mas não consigo.
1 – E é por isso que quer dizer adeus à vida?
2 – Não é que quero dizer, mas creio ser a única serventia neste momento, de tão
seco que estou.
1 – E se te enchessem de água, ou melhor, de vinho?
2 – De tão velho e de tão ruim que não quebro, já percebi que mesmo quando cheio de
qualquer sagrado líquido que seja continuarei sempre a ser Cântaro, é minha essência.
1 – E aquela coisa do cigarro, ficar parado assim numa noite fria e mirando os olhos cegos num ponto longe até que chega a hora que, de repente, você percebe?
2 – Você não percebe...
1 – O quê?
2 – Essa coisa que te disse não existe!
1 – Não?
2 – É claro que não! Senão não estaria aqui, tão velho e tão rachado, sem nunca quebrar, esperando que alguma coisa aconteça, mesmo que distante, que me permita dizer adeus a essa vida. Estaria já estraçalhado e espalhado em mil pedaços pelo chão, esse mesmo chão no qual tuas raízes se emaranham e te fixam.
1 – Bom, por falar nisso, é verdade. Já está tarde.
2 – Sempre é tarde.
1 – Mas preciso ir agora.
2 – Adeus.
1 – Não quer vir comigo?
2 – Vá você.
1 – Tem certeza?
2 – Já te disse adeus!
1 – Então, que continue!

sexta-feira, junho 05, 2009

Palavrório


Olha, escuta, bem sei que não era pra estarmos aqui. E sei bem que, estando aqui, não era pra estarmos do jeito que estamos. Que jeito? Esse, assim como estamos. É que eu não sei como dizer. Aliás, nem sei bem o que dizer. Nós aqui, nós todos, e eu sem palavras. Puxa, que coisa. É estranho. Então... digam alguma coisa. O quê? Não têm nada a dizer? Não? E eu, incomodo? Não? Que bom. Então, como ia dizendo... O que eu dizia mesmo? Nada? Estava enrolando? Acho que eu não sabia o que dizer. Isso! Isso mesmo, dizia exatamente isso. Que não sabia o que dizer! Que engraçado. Espero não estar sendo, neste momento, né?, muito repetitivo. Mas... na verdade... acho que já sei. Necessito alguns segundos.

Desculpem-me pela demora. É que, quando saí, lembrei-me que estava na hora do meu cigarro, o doutor nunca que me perdoaria. Então necessitei minutos.

Ainda bem que continuam aí, todos calados. Será que ainda bem? Ficarmos aqui quietos, contando nas batidas do coração os segundos, minutos, horas, dias, meses e anos e vidas inteiras? Será? Ah, sim! Melhor assim do que se complicar, não é? Fiquemos quietos, então.

...

Queria saber se esse silêncio incomoda mesmo tanto quanto parece. Na verdade, é até confortável, não é? E por que eu não me calo? Não sei.

...

É que não me calo justamente por que não sei se é tão confortável assim. Seus olhares silenciosos já disseram muito mais do que já tentei verbalizar, todo esse palavrório. É, tenho medo de calar a boca e de dizer exatamente o que tem de ser dito com meus olhos, e daí? Meus olhos fogem, não encaram, agradecem quando enxergam imagens que não são agressivas como a maioria, e insistem sempre em serem dispersos. O quê? Nada é tão agressivo assim como penso? Gostaria de saber disso. O quê? E meus olhares também falam? O quanto eles falam? Muito mais do que imagino? Desgraçados delatores. Já que é assim, o melhor é calar-me.

segunda-feira, abril 27, 2009

Quase frustração, talvez.


Quase frustração é quase descobrir aquilo que nos faria quase feliz, quase tarde demais, talvez. Aquele alimento que quase nos saciaria a alma, talvez. É quase entender, um segundo depois. Quase, quase... era possível e não sabíamos. Mas, talvez, ainda dê pra levar a vida, uma vida dessa quase frustrada, no meio de todas as vidas completamente frustradas que nos rodeiam. Ainda estaríamos acima da média, talvez.

O que quase me frustra, talvez, nesse constante "segundo depois" que é a eternidade dos quase frustrados, é ver esse tipo de coisa.

E talvez esse mais, ou quase.


E esse.

quinta-feira, março 19, 2009

O Cerne



Aprendi, há muito tempo, ainda em minha mocidade, que não devemos abordar um assunto diretamente no seu cerne. Na verdade, não aprendi, apenas ouvi alguém dizer. Só depois de velho é que cheguei a entender a lição. Aí sim, compreendi a importância da abordagem vagarosa que deve ser utilizada em qualquer tipo de questão. Abordagem daquela que vai apreciando pelas bordas qualquer tipo de matéria, que mastiga bem e devagar as idéias pensadas, e que as digere com calma antes de expelir qualquer opinião. Não que agora eu consiga fazer dessa prática um hábito, muito menos especialidade. Mas, quando alcanço tamanho grau de paciência, exulto em meus ânimos de tão satisfeito.

Como já disse, essa não foi lição aprendida numa tacada só. Foi absorvida com o passar dos anos de forma quase que imperceptível. Depois de cada erro, de cada equívoco, de cada ilusão, de cada decepção, durante décadas. Havia sempre, no meu tempo passado, a pressa do jovem, a necessidade da definição rápida de toda e cada situação, da resolução imediata de todos os problemas. Quem dera eu já soubesse que são poucas as situações que se definem e que muito menos são os problemas que se resolvem. Mas isso faz parte da vida, nunca tivemos nenhum manual para aprendê-la e, se tivéssemos, provavelmente não nos disporíamos a estudá-lo.

Mas essa conversa talvez pareça papo de velho saudoso. Qualquer jovem sabe que tudo nessa vida é possível, e que as oportunidades abundam por aí para serem agarradas, basta querer, e que não há tempo para ter paciência e que devemos simplesmente passar por cima de todas as desilusões. Está bem fácil a vida nesses dias que ainda insistimos em viver.

Hoje sobram os manuais. Em qualquer livraria encontramos resumos de todas as histórias e conselhos que escutamos de nossos avós, sentados na porta de casa pra fora, quando ainda éramos crianças. Antigamente poderíamos ser médicos, professores, metalúrgicos ou continuar roçando. De uns tempos pra cá inventaram tantos problemas que existem mais profissões para resolvê-los do que gente capacitada para exercê-las. Misturaram até misticismo com medicina e inventaram a futurologia das doenças e deram o nome de genética. No meu tempo qualquer doença tinha apenas dois futuros possíveis: a cura ou a sepultura. Hoje nenhuma pressa se salva, moramos a cinco quarteirões de distância do compromisso e ainda atrasamos por causa do trânsito. Naquela época os quarteirões tinham a distância de sítios e eram medidos em alqueires. Íamos a pé por uma estrada de terra batida e ainda chegávamos a tempo para o café da manhã. Ah, sim! O café da manhã era coisa de bons dias e não de boas tardes como acontece hoje. Lembro que na minha infância uma arroba era um fardo triste de se carregar. Hoje ela não passa de um pouco de tinta pintada numa pequena tecla do computador dos meus netos, e se apaga em alguns dedos de conversa. E eles, meus netos, que graça, me ensinam tanta coisa! Eu, na idade deles, só fazia resolver problemas de aritmética pro colégio e calar ouvindo as histórias de meus avós todas as noites, menos em dias de missa, que eram dias de guarda.

Minha velha se entende melhor com essa modernidade toda. Só a chamo de minha velha porque é minha mesmo e pelas contas da idade. Perto de mim ela é ainda uma criança bem esperta. Eu não passo de um velho com o olhar perdido naquele horizonte que está por vir. Ela senta em frente àquela máquina de computador e vai acreditando nas coisas que aparecem. Descobre uma receita pra emagrecer e me conta, e eu respondo que já não precisa mais, que o amor que sinto por ela já está incrustrado feito vida em mim. Depois ela tenta me mostrar o mapa da rua que a gente mora, com fotografia e tudo, e eu pergunto qual a utilidade de um mapa que mostra o lugar onde já estamos e não aquele para o qual queremos ir. Ela me pergunta aonde quero ir e eu respondo que não sei, que provavelmente queira ficar por aqui mesmo, e volto atrás e entendo a utilidade do tal mapa. Daí ela vem e diz que a gente pode conhecer o mundo todo por ali e tenta, de novo, me mostrar as fotografias do que existe porta afora. Eu finjo que olho, faço que vejo, mas minhas lembranças me sequestram. A única coisa que enxergo é a recordação que tenho da primeira vez que fui até o alto da serra que ficava atrás do nosso sítio, há muito tempo atrás. Enxergo apenas aquele imenso horizonte que ainda deve estar por lá. E as lágrimas voltam aos meus olhos velhos e secos só de lembrar que um dia o mundo afora foi somente tudo aquilo ali.

Entendi, agora há pouco, já nessa velhice, que não devemos ir tão fundo, tão no cerne das questões, assim, de uma vez só, se não quisermos ter os olhos marejados. Mesmo assim, insisto. Não compreendo toda essa pressa moderna, assim como não fazia idéia e nem pensava sobre o por quê de tanta pressa eu mesmo tinha quando jovem. Enfim, dessa coisa de modernidades, uma por outra, prefiro a minha, a velha. Que é o que todos buscamos, mas só percebemos quando o tempo passa. É vagarosa essa coisa, o cerne do que somos.

sexta-feira, março 06, 2009

Eu e o macaco.



Nenhuma percepção de mundo é perfeita, completa. A minha, garanto, é falha, é meia. Culpa minha, claro. Não tenho o olho direito por um equívoco que cometi. Uma macaco o arrancou, desses macacos de programas de televisão e circo.

Estive num desses eventos e, no fim do espetáculo, quis conhecer os bastidores. Ele estava solto e quieto, agachado em um pequeno banco, com as mãos dadas entre as pernas. Observava o movimento, distraído. Cheguei perto me abaixei e olhei nos olhos dele, que me responderam. Disse em voz alta, para que ele entendesse, que queria descobrir no que estava pensando. Estavam marejados e eram profundos e misteriosos, surpreendentes, fascinantes. Pareciam humanos e acho que quase conseguiria penetrar em seus pensamentos. Não imaginava que tal atitude, fitar assim procurando desbravar e conhecer, não era bem-vinda entre macacos. Foi tarde quando percebi a imensa ira que emergia do mar de seus olhos, não tive tempo de esquivar. Um guincho e dois dedos em meu olho direito.

O que fiz, para ele, o macaco, era agressão. E ele me respondeu. Socorreram-me ao hospital, pagaram-me indenização e tudo o mais que situações desse tipo exigem.

Demorou um pouco, mas consegui me acostumar com essa situação quando finalmente percebi que essa falha e meia percepção, a da falta do olho e do olhar completo, já era corrente em meu viver. Isso foi a tempo de livrar o macaco do sacrifício. Até pensei, durante dois ou três minutos, em adotá-lo. Era o macaco que abriu meus olhos para o que não viam! Mas logo percebi que poderia estar errado. Minha percepção das coisas continuava a mesma, falha, e, afinal, nunca sobe de ninguém que tivesse entendido as motivações e intenções de nenhum macaco. De baleias e golfinhos, talvez, mas essas são fáceis. Macacos são mais complexos. Eles têm olhar e lacrimejam. Resolvi não arriscar. Depois de participar de alguns programas de televisão foi lacrado em um zoológico e não soube mais dele.

O lugar onde deveria estar meu olho direito é feio, pra quem olha. Tem uma prótese, não outro olho artificial, apenas um material que isola e protege o oco da minha cabeça. Às vezes, no espelho, lembro que me assombrei com a profundidade do olhar do macaco... O meu, agora, é muito mais profundo. Ao menos o olhar direito.

Mantive meu emprego na mesma empresa, mas não com a mesma função. Antes vendia sapatos, ou calçados, que não eram somente sapatos. Agora trabalho no estoque. Não disseram a razão, mas eu vejo, no espelho. Essa mudança não me abalou, embora não possa negar que gostava muito mais e até sentia prazer em trabalhar na loja. Era bom. Atendia a freguesia e sempre tentava adivinhar qual era o gosto do cliente. Um sapato, um tênis, uma sandália. Algo confortável, algo barato. A cor, o modelo. Alguns tinham vergonha dos pés e do chulé. Apareciam, claro, pessoas com pés realmente feios e outras com pés muito bonitos também. Mas não era para julgar esse tipo de coisa que eu estava lá. Estava lá para ajudá-las. Imagino o que seria se um veterinário tivesse medo ou não gostasse de certa raça de certo animal; ou se um médico tivesse fobia a sangue; ou se um contador, sendo pessoa de números pelo ofício, tivesse medo deles; ou se uma pessoa de letras, e sendo-a pela vida, tivesse pavor de palavras feias ou erros de ortografia. Imagino o que seria... É como se um piloto de avião tivesse medo das alturas e como se ele nunca tivesse pesquisado sobre grandiosos acidentes aéreos que se resumem ao mínimo, ao chão. Eu era um vendedor de sapatos e estava preparado para as tragédias do meu ofício. Quanto ao chulé, para animar o cliente, eu sempre lembrava que nós, vendedores de sapatos, também o temos, e geralmente mais forte e difícil de suportar, pois nossos narizes, de tanto trabalhar, já estavam calejados, tinham perdido a sensibilidade.

Eu gostava, era bom trabalhar na loja. Agora estou no estoque, e sem um olho. E são tantos pares... tantos pares... Isso dói às vezes. Quando o movimento está fraco e eu fico com poucas demandas no estoque, olho para aquelas caixas, uma por uma com a certeza de que há sempre um par em cada uma delas. Sempre. Nunca um trio e nem um sólo. Sempre um par. Daí eu penso em para quem este mundo é feito. Não para mim ou pessoas como eu, tenho certeza. Se a pessoa não tem uma perna, pagará o dobro quando comprar um sapato ali na loja. Eu, pelo menos, posso aproveitar as duas lentes de contato. São muito mais econômicas, dessa forma, e eu não quero usar óculos, seria ridículo. Mesmo que fossem escuros e escondessem minha cavidade direita. Na minha visão seria, a lente direita, uma redundância.

Me perdoe, queria dizer uma coisa e uma coisa sempre puxa outra e que tenham paciência as pessoas mais objetivas, que é isso que sempre dizem e todos sabem. Comecei dizendo que nenhuma percepção é perfeita, completa. Foi isso o que comentei com um cliente esta manhã, na loja de sapatos. Sendo estoquista, não tenho certeza se é essa, a palavra estoquista, a que designa minha profissão, e nem se é essa, a profissão, minha vocação, mas é isso que sou, por enquanto, para todos os efeitos. Voltando: sendo estoquista, por profissão, sou o responsável de trazer os pedidos das caixas de pares de sapatos do estoque à loja. Alguns deles, os clientes, que é profissão de todos sermos clientes de alguma coisa. Alguns deles, como dizia, saem correndo, horrorizados, quando me vêem; outros apenas desistem da compra e saem devagar; alguns fingem que não viram que viram a falta do meu olho direito no lugar direito onde ele deveria estar; existem os que nem percebem essa falta. E teve esse que reclamou que eu trouxe a caixa com o par de sapatos de número errado. Talvez não coubesse no pé dele. Fez um escarcéu, me chamou de caolho e essas coisas. Não respondi. Não pelo emprego, não tenho medo de perdê-lo. Trabalho muito bem no estoque. Não respondi apenas porque pensei que a vida daquele homem devia estar um inferno, e eu não queria piorar isso. No fim das contas, quando meu gerente veio socorrer o cliente, eu trouxera o número certo. Ele é que tinha a vista e a vida ruim por conta da idade ou da vida mesmo e enxergou o que não era. Foi nessa hora que fiz esse comentário sobre essa coisa da percepção. Ele desistiu da compra, disse que aquilo era uma absurda falta de respeito e foi embora. Pensei por um instante em ir atrás dele e me desculpar, mas instante depois achei melhor que não. Nossa percepção nunca é perfeita, e a minha, pra piorar, é falha e meia. Achei que não.

Sempre soube de muitas pessoas que tentaram entender as motivações e intenções dos seres humanos. Até de baleias e golfinhos. Mas os seres humanos são mais complexos. Têm alguma coisa que, até se tivéssemos um olho a mais, não conseguiríamos enxergar. Não sei e nem ouvi falar de ninguém que tivesse conseguido. E, além disso, não podia me preocupar com essas coisas, tinha mais cinco caixas de pares de sapato para descer do estoque.

terça-feira, dezembro 30, 2008

Curtas


resgatadas do http://curtascurtas.blogspot.com

Impossível não criar o mínimo possível.


Noites atrás estavam todos presos, e mesmo assim tudo queimava.
Eu estive na noite ardente, embora fosse triste.
Não iria torrar em casa de jeito nenhum!!!


"Andei pensando...
...acho melhor começar a temer as pessoas iguais a mim!"


Se quiser
que
a caneta
escreva
a caneta
a caneta
a caneta
escreverá.


Viva cada dia da sua vida como se fosse o último.
Um dia você acerta!


Que sabor, que nada!
Eu gosto mesmo é do efeito!


É a intensidade que me fascina. Enquanto chacina meu corpo, me dá força, coisa pouca, pra ficar acordado e em pé.

quarta-feira, novembro 26, 2008

Protopoema, de José Saramago, do Provavelmenet Alegria.




Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.

José Saramago - Fala do velho do Restelo ao astronauta


Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

segunda-feira, novembro 03, 2008

In a Silent Way



In a Silent way

O baixo dita o ritmo. Parece um lento coração que não se apressa em gastar todas as batidas que lhe foram prometidas ou garantidas. Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... É noite. Chove. E chove lento. As gotas todas desenham um jogral móvel de poucas e contrastantes cores. O azul marinho, quase negro, que desce do céu, e o reflexo amarelado da iluminação que desce dos postes. É um jogral sépia. Lento e sépia. E pulsa. Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... Teclados ao fundo lembram buzinas e sirenes bêbadas. Bêbadas e muito mais convincentes do que quando sóbrias. Mas apenas lembram, parecem. Estamos num silencioso caminhar. Lugar quieto. Lugar surdo. De nada adiantaria gritar, nem buzinar e nem sirenar. Serenar, talvez. E ao lado das buzinas e sirenes vem também um tilintar metálico. Seria o platô dos veículos das buzinas, ou o prato metálico chiante da bateria? A bateria, não aquela que morre, mas aquela que ministra o ritmo. Ministra, pois o ditador já temos, já foi dito: Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... No meio do ritmo ditado e do lento jogral móvel que a chuva pratica com a luz dos postes; e no meio de buzines e sirenas e do chiado ministrante da bateria; no meio de tudo isso meus pensamentos seguem as pegadas das idéias de um trompete. Também ele bêbado. Também eu trompeteando pelas pedras do caminho. Mas a chuva está ali para lavar todo o pó de cada queda.

Vira o disco.

Mentira. Mentira das mais normais quando dizemos que, sim, nos lembramos de cada queda. Mentira. Mal nos lembramos, agora, qual era o ritmo cadente. O trompete continua. Nos esquecemos até em que número estávamos trabalhando qualquer pronome até este momento. Mas quem se importa? Ouça. Creio que seja aquela tímida, mas segura, caixa da bateria. Se não me engano, os teclados jã não estão assm tão bêbados. Parece até que o baixo-ditador foi deposto. E agora só gagueja: du-du duuumm... du-du duuumm... du-du duuumm... du-du duuumm... E só larga da gagueira para acompanhar a dança dos teclados. Mas ali vem novamente o trompete que incentiva o jogral da chuva. Imagens e mais imagens, feito televisão, feito holograma e ninguém mais pra ver. E a bateria, que ministra, fala um pouco mais alto, faz pular um tanto mais forte o coração. Mas depois vai, deixa. Serenes, seguimos o caminho. É noite. Noite silenciosa. E chove. Chove lento. Se houvesse mais alguém por ali, alguém que não tivesse medo de silêncio e nem de se molhar, acreditaria no quão vagarosa chovia aquela chuva. Lenta, mais ou menos, como a vagarosidade do escorrer de algumas lágrimas. Aproximadamente dois terços de hora para escaparem das pálpebras e escorrerem através do rosto até o salto do queixo, indecisas em cair, acompanhando a incansável repetição do vai e vem da agulha no miolo do disco.

Ainda chove.

quarta-feira, setembro 24, 2008

alone

terça-feira, setembro 23, 2008

Impreciso.


1 - Causa com ele, destrói; destrói primeiro o fígado dele.

2 - Mas o fígado não adianta, reconstrói-se fácil, viverá para sempre.

1 - Sim, mas não o mates tão cedo também.

2 - Não, viverá apenas o suficiente.

1 - O suficiente para quê?

2 - Para o necessário.

1 - Então deixa-o necessitado, impeça o que lhe for preciso.

2 - É matéria imprecisa, sei do que necessito, mas não calculo as contas do que possa lhe faltar.

1 - Ordena que o diga.

2 - Não dirá.

1 - Então arranca-lhe a língua.

2 - Assim não gritará a clemência.

1 - É de clemência que necessitas?

2 - Eu?

1 - Óbvio que é de tu que falo.

2 - Com a clemência esconder-me-á o que necessita.

1 - Então tira-lhe a demência, pois a consciência é mais honesta, concisa e, principalmente, necessitada.

2 - Tão honesta e concisa que contar-me-ia facilmente que carece, mais do que tudo, da própria demência.

1 - Então é isto, tira-lhe a demência, se saber de sua maior carência é o que desejas.

2 - Mas não desejo tratar de uma simples e pura consciência.

1 - Então, o que desejas?

2 - O suficiente.

1 - O suficiente que ele possa lhe dar, ou que tu possas querer dele?

2 - É impreciso.

1 - E o que é preciso?

2 - O equilíbrio.

1 - É coisa impossível em tal situação.

2 - Impossível?

1 - Sim, se é assim que queres, solte-lhe as amarras e a mordaça.

2 - Mas, desta forma, estaríamos em iguais condições, e vulnerável eu também às denúncias alheias.

1 - Se o que queres é o equilíbrio...

2 - È coisa impossível.

1 - Cala-lhe as denúncias!

2 - Não posso.

1 - Podes, é fácil.

2 - Não quero.

1 - O que queres, precisas?

2 - Sou impreciso.

1 - Então arranca-lhe as mãos e os pés, começando pelos dedos, e vais descobrindo aos poucos o que necessitas.

2 - E se depois dos dedos e dos pés e das mãos ainda não soubesse?

1 - Arrancar-lhe-ia os braços e as pernas.

2 - E se depois das pernas e dos braços ainda não soubesse?

1 - Sobrar-lhe-iam os dentes, as orelhas, os olhos e as narinas, uma coisa de cada vez.

2 - E se, depois de tudo isso, ainda assim não souber?

1 - Extraia-lhe cada órgão interno, um por um, até o coração.

2 - O coração eu não poderia.

1 - E por quê?

2 - É do que um homem é feito: coração, consciência e demência.

1 - Um homem já não é mais homem se tiver as mãos atadas e a boca amordaçada.

2 - Um homem será sempre um homem enquanto ainda for demência, consciência e coração juntos.

1 - Então terás o mesmo que agora tens, a diferença é que sem mãos para atar, sem boca para amordaçar e sem órgãos para estripar.

2 - Exatamente o que preciso.

1 - Precisas?

2 - Calculo, não sei se é preciso o cálculo.

1 - Estás em dúvidas?

2 - Talvez.

1 - Duvidas?

2 - Sei que estou.

1 - Então chegaste à mesma conclusão de sempre?

2 - Sim.

1 - Novamente?

2 - Não tenho como escapar, estou atado e amordaçado.

1 - E só depois de tanto tempo percebeste?

2 - Como sempre.

1 - E agora?

2 - Peço que solte-me destas amarras.

1 - Também estavas livre o tempo todo, mas não ousaste acreditar.

2 - Se estava preso e ao mesmo tempo estava livre, confundo-me entre empate, derrota e vitória neste embate, qual título nos é de direito?

1 - Como sempre dizes, é impreciso; talvez saibam aqueles três que estão atrás do espelho.

sexta-feira, setembro 19, 2008

Próximo Sarau dos Prophanos

sexta-feira, agosto 15, 2008

Ofício



Não é que tivesse nascido, inato, ali, assim, dentro e atuante como um coração ou um rim ou um futuro câncer. Também não foi caso adquirido, assim como acontece com certas doenças, na troca de ares, sangue ou líquidos corporais. Foi contágio, sim, mas de outro tipo. Aparentemente quieta, lentamente, gradual, foi quase imperceptível a adicção. Pode-se chamar de contágio social. Na prática, nem é considerado contágio. Chamam de dom ou dizem que tal pessoa “nasceu pra isso ou pra aquilo”. É até comemorado e respeitado.

Desviando um pouco do assunto, é engraçado como essa coisa acontece quando se trata de pensarmos sobre a morte. Ela sim é que seria algum tido de “dom”, porque domina, é inata, programada, desde sempre, em qualquer tempo, para todos. Mas é tratada como surpresa, como um triste imprevisto. E, pelo contrário, é chorada e não querida. Mas isso são outros papos...

Nasce um ser humano, uma unidade. Pequena criança e já carrega consigo grandes esperanças, esperanças pequenas, futuras frustradas esperanças, sem saber; sem nem sequer ter a capacidade de saber de algo. Antes mesmo de fazer funcionar, ou – para outros teóricos – adquirir suas ferramentas de linguagem, já impõem-lhe uma missão: ser feliz, ter sucesso, e sinônimos do tipo. E, para cumprir sua missão, aquela criança, pequena criatura desejando morrer no conforto do leite materno, nem imagina que terá de enfrentar incoerentes lições e exercícios de uma cartilha duvidosa. A cartilha da vida. Sim, claro! Pois que a felicidade e o sucesso requeridos em sua missão não são quaisquer uns. São pré-conceituados, padronizados; abrangem um minúsculo ângulo de um círculo de possibilidades que existem apenas pelo fato de se respirar; e se formam de requisitos que excluem e classificam todo o restante, tudo aquilo que sobrou, como fracasso ou frustração.

É óbvio que essa cartilha não se encontra em qualquer lugar. Aliás, na verdade, ela nunca nem mesmo foi escrita, muito menos impressa em folhas de papel para se ler, apesar de muitas e tantas tentativas. Dizem que ela se inscreve, se imprime no coração e na mente à medida e simultaneamente em que se vive a própria vida. Dizem isso, mas nem sempre se importam em considerar que é um argumento barato; nunca assumem que não têm tanta certeza sobre isso e sempre se esquecem de perceber que a cartilha existe, sim, mas é outra, que não é lida e nem dita, mas ditada num silêncio de mudez desde a fecundação da primeira idéia de felicidade ou sucesso que sempre se quer impor às vidas alheias.

Seguimos a cartilha, sem querer, sem nem sequer ter a propriedade de querer algo, e vamos nos convencendo que temos de respeitar, senão seremos mal-criados; que temos de ser inteligentes, senão seremos pobres; que temos de estudar para ficarmos ricos, senão seremos burros; que temos de ser isso e aquilo, senão seremos alguma coisa muito ruim. E vamos aprendendo a cartilha sem perceber, gradualmente.

Num dia nasce a criança, unidade, e no outro está ali, aquela coisa crescida, indivíduo, com mais que década de conceitos e anti-conceitos, de inteligências e ignorâncias; pra ser mais exato, ridiculamente formado e completo de coisas das quais gosta e também das quais não gosta. Ou seja, nada de mais, animais também, desses os quais chamamos irracionais e também de bestas, gostam e também não gostam de coisas.

Mas ainda é cedo, e só agora é que aquela criatura, que agora a chamamos de homem, genericamente, que tanto faz homem ou mulher; mas, continuando, só agora é que a figura está pronta para iniciar a busca de seus objetivos, que apesar de assim os chamarmos agora, continuam sendo aquela mesma missão, só que disfarçados numa outra palavra de viés mais adulto e urbano. Se esse homem quiser mesmo dar cabo a essa missão, ou atingir seus objetivos, então terá de continuar seguindo à risca os exercícios que lhe foram impostos. Agora ele deve completar ao menos um curso superior, que assim é chamado para lhe conferir maior grau de importância na tabela de importâncias às quais nos atentamos. E antes de ser o dito superior, o homem torna-se estagiário. E depois de formar-se, toma um bom emprego, requisito essencial da cartilha. Depois de alguns anos de excelentes dedicação e renúncias, ele começa a vislumbrar a possibilidade de ter sucesso e ser feliz. Porém, sendo conceitos tão impossíveis, que é isso o que mostram a história, a filosofia e a nossa própria vida, o sucesso e a felicidade já estão simulados em bens de consumo e bens duráveis. Durante algum tempo, bastante tempo, esses bens bastam. Mas depois nosso homem começa a pensar em aposentar-se. E pensa, pensa, pensa algum tempo, ou melhor, bastante tempo. E depois percebe que aquela vida bem sucedida, pacífica e feliz ainda está longe, muito longe. E ele tenta esquecer disso, e vai esquecendo e esquecendo e esquecendo e esquece-se de vez. Não precisa mais lembrar. Já acorda automaticamente e chega ao trabalho sempre no horário. Dá as ordens certas no momento exato, pois agora é um superior. Tem roupas certas para o ofício e roupas certas para o descanso. O prazer está, se ainda é prazer, dentro dessas duas roupas. Atende o público e fala em voz alta, ninguém ousa contrariá-lo. Senta em sua mesa e assina papéis e mais papéis, decide a vida de outras pessoas que também seguiram ou estão começando a compreender a cartilha. Agora ele não é mais um ser ou criatura, criança homem e nem figura, talvez caricatura tornou-se. Tornou-se
Escrevente Autorizado de Tal Registro de Imóveis de Tal cidade. Atrás de seus óculos, de sua mesa e de sua curiosa máquina de perfurar datas em documentos, é a perfeita imagem de um Escrevente Autorizado, nasceu pra aquilo. Ninguém em sã consciência quereria serviço menos qualificado, nem creria em tamanha qualificação. Tornou-se agora uma peça, perfeita, em seu ofício; um parafuso, quem sabe até uma engrenagem, vital, que auxilia a funcionar a máquina da sociedade em que vivemos, e justifica a impressão daquele nosso manual, daquela cartilha.

Quanto à missão, que fique ali, quieta. Outras gerações haverão de cumprí-la.

quinta-feira, agosto 07, 2008

Soldado Esperança



Sou o primeiro soldado,
da primeira linha de frente,
para tudo estou preparado,
não há nada que eu não enfrente.
 
Sou o primeiro bastardo,
no meio de toda essa gente,
à vida estou condenado,
mesmo assim tão descrente.
 
Sou o primeiro palhaço,
com um largo olhar descontente,
acrobato no meu tablado
coreografias incoerentes.
 
Eis que prostituiu-se a esperança, e morreu de um vírus estranho à nossa incrível capacidade de consertar e entender todas as coisas.
Vendeu-se por um preço barato, quase nada, que é o valor que sempre estamos ansiosos em pagar.
Ela sorri na hora da morte, porque sabe que não é a última. Sabe que depois que se for, será tudo muito engraçado.
E morre cantando que é o último soldado...
 
E o que seremos depois que o soldado baixar?
Acostumamos a idéia de que há sempre algo por vir, na cabeça.
Esquecemos que nossa ordem foi: "Vá à guerra, proteja-me!"
E não percebemos o absurdo de gritar o impossível: "Levanta-te, soldado! Ressuscita-te, engana-me!"
 
Era a esperança.
O mais que putrefato, esqueleto que erguemos diante de nossas vistas sempre que levantamos, depois de cada queda.
A marionete que dissimulamos, perfeitamente manipulados.
"Ressuscita-te!", gritamos. E ela continua em sua condição de ossos.
E nós não aceitamos nada que não colírio em nossos olhos. Mesmo que seja veneno. Mesmo que seja placebo.
 
Canta que é o primeiro soldado.
Últimos generais que somos, continuamos com a guerra, quase que alheia, sentados, sonhando o estranho conceito que acreditamos – palavra de fontes seguras – ser a vitória.
 
Engana-me!, cantamos. E seguimos o ritmo de um ossário tilintar.

quinta-feira, julho 31, 2008

Prometo!

Sem palavras...

http://www.asc.org.br/12promessas/



Experimente!

quinta-feira, julho 24, 2008

blublu

http://blublu.org

Só vendo:


MUTO a wall-painted animation by BLU from blu on Vimeo.

terça-feira, junho 24, 2008

Tudo bem (pensamentos soltos)



Está tudo bem. Pior para uns, para outros nem tanto. Mas está tudo bem, tudo andando na boa ordem.

As músicas, como sempre, continuam nos emocionando, enchem nossos corações vazios e embargam nossos olhos pela melodia, pela letra ou por aquele dia que nos lembra. Embora o trânsito ou a conversa alheia no ônibus ou a outra música do volume máximo do carro ao lado atrapalhem, nossa música mantém sua magia. Engavetamos o momento e o sentimento para mais tarde, compramos o cd ou ouvimos pela internet mesmo. As lágrimas, hoje em dia, já sabem esperar o intante certo de verterem.

Nossos bifes continuam sendo postos nos pratos, pois essa tal de fome é que ainda não aprendeu a esperar. Até as crianças pobres já aprenderam a arte da degustação tântrica, coladas nos vidros apetitosos das janelas de vidro de nossos restaurantes. Já estão de barrigas tantricamente cheias, por isso é que só esmolam para comprarem drogas.

As drogas sim, é que já não são as mesmas. É o preço que pagamos para conter a inflação. Apenas o preço das cervejas, cachaças e cigarros é que sobem, pois já estão legalmente inseridos nos jogos do mercado comercial.

Nossa saúde também continua na mesma, dá pra viver. E quando não dá, não dá.

A educação que sempre recebemos já basta para os objetivos que temos. É formada, geralmente, sem muitas exigências, dependendo da casta que se observe. Ter de sonhar e ter de saber que não podemos realizar os sonhos que nos impõem foi uma das melhores idéias de todas.

Mas nossa fé é exigente. Só lhe falta ser institucionalizada para poder cobrar os juros dos impostos atrasados.

A contribuição para a nossa segurança já é imposta. Mas não é seguro fiar-se nela. Às vezes atrasa. Ela, a segurança, não as contribuições. Os juros sempre são altos.

Tudo o que lemos ou vemos ou sabemos também cumpre seu papel: estar lido, estar visto ou estar sabido. Talvez nos falte alguma inteligência ou coragem para mais do que isso. Mas está tudo bem. Tudo seguindo na mais perfeita ordem. Pior para uns, para outros nem tanto.

sexta-feira, maio 02, 2008

Do fundo.



Encontrei o fim, o fundo do poço, como dizem por aí. Não vale nada, neste momento, tudo o que conquistei com árdua luta. Entreguei-me completamente a batalhas que não enxergava, sem perceber que não carregava arma alguma. Estava no pelotão de frente, servindo de escudo às marteladas diárias que, na verdade, não estavam endereçadas ao meu coração. Submisso a todas as dores, anestesiava-me com a percepção fechada e minha voz respondia muda àquilo que eu imaginava ser uma desgraça inevitável.

Todos sofremos e reclamar é luxo, é falta de fibra, é atitude de fracos. Sempre aceitei essa idéia sem questionar. Qual direito eu teria? Deveria, sim, era agradecer, pois era um felizardo e estava tão distante de tantas misérias piores que a minha. Era também um cidadão e cumpria exemplarmente meu dever para garantir o bem-estar social. Qualquer infelicidade minha seria injusta e inútil.

Mesmo assim meu coração queimava em meu peito todos os dias. Não era ódio, não era indignação, era um não-compreender-bem-o-que-se-passa; uma pedra que pesava cada vez mais um culpa incoerente, mas que eu também recepcionava sem procurar entendê-la. Tratava apenas de suportar meu fardo e seguir a trilha de volta para mais uma noite de merecido descanso.

Certa noite, esperando o ônibus, apareceu esse homem, que logo de cara pensei que fosse um lunático. Pediu um cigarro e eu disse que não tinha, que não fumava, a mais pura verdade. Ele então tirou um maço do bolso, um isqueiro prateado, acendeu um pra ele e me ofereceu outro. Disse que não, obrigado, que não fumava. Respondeu que eu deveria experimentar, que eu nunca teria nenhum tipo de verdadeira convicção nesta vida se continuasse a negar e rejeitar as coisas sem saber realmente o que eram. Argumentei que fazia mal pra saúde e ele acrescentou que dormir no ônibus àquelas horas também.

Aquilo me fez refletir um pouco e depois de algum tempo quieto ele voltou a falar pra contar uma história estranha. Perguntou se eu sabia porque ele ainda não havia morrido. Respondi que não, não sabia. Ele disse que era óbvio que não, a pergunta era brincadeira, pois ele já tinha morrido. Já tinha morrido? Sim, morri uma vez, alguns anos atrás. Claro que sim, percebe-se... É sério! E o que faz aqui então? É que eu voltei. Por que voltou? Bom, esse mundo pode até ser uma desgraça, mas tem algumas vantagens: pra resumir, nós podemos escolher a desgraça à qual nos entregamos e, uma coisa muito importante, no céu não tem cerveja e nem bebida alguma, no inferno o preço é alto e no purgatório ela é quente, light e sem álcool, então voltei.

Achei graça e ele, antes de se despedir e ir embora, recomendou que eu prestasse mais atenção nos céus e nas nuvens, pois deus está sempre pronto pra disparar suas carabinas e geralmente não nos dá tempo de cumprir aquelas promessas ou satisfazer aqueles desejos de sempre, e que nós sabemos disso inconscientemente e é por isso que matamos tanto tempo e cultivamos tanta pressa e tantas necessidades mais acessíveis aos nossos cartões de crédito, para não lembrarmos que nossas vidas nunca serão completas e nos iludirmos com a melhor satisfação que nosso salários puderem pagar.

Sozinho, no ônibus, durante os oitenta minutos que me distanciavam de casa, experimentei uma sensação de conforto por quase compreender aquele ardor no coração e não consegui dormir durante a viagem.

Era início de semana e aquela sensação se manteve durante os outros dias, mas a cada minuto que passava ela se transformava em desconforto; um desconforto cada vez mais forte.

No sábado, depois do expediente, a angústia era tão extrema que eu não sabia o que fazer. Não voltei pra casa, resolvi encarar um porre, o meu primeiro. Descobri o prazer de fumar. Lembrei de todas as pessoas que encarava dia após dia. Pessoas cansadas e enfermas nos ônibus-leito dos caminhos da morte em vida de todas as madrugadas; pessoas saudáveis e felizes com as bonificações e gratificações dos salários que garantiriam o pagamento das faturas de todos os cartões de crédito; pessoas como eu, que certamente carregavam um coração em chamas no peito. Pensei nos caminhos que pisávamos, constantes em direção, sentido e horário. Tentei imaginar em qual momento da vida acontecia a menor intensidade de nossa cegueira.

Não dormi, o cansaço não me atacou. Permaneci no mesmo ritmo durante o domingo e fui repreendido por todos que conheciam e estavam acostumados com minha rotina quieta e servil. Decidi então me isolar. Trancado no quarto, conversando com o cinema que o teto me apresentava, não pude resistir, o sono me alcançou.

Acordei no outro dia, cansado ainda, e automaticamente segui os atos marcados de todos os dias. Banho, café, elevador, bons dias, mas não dormi no ônibus. Toda a viagem auto-denunciando minha fraqueza; que quando finalmente identifico a razão daquela inquietude, percebo que não tenho forças e nem coragens de assumí-la, de levá-la adiante.

Caminhando novamente o mesmo roteiro de sempre, aceito que encontrei o fim, o fundo do poço, como dizem por aí. Fraco, submeto-me à minha incapacidade de fugir. Meus passos seguem o horário, a direção e o sentido rotineiros de sempre.

São sete e quarenta e oito da manhã, segunda-feira, e engulo o gole seco do nó da garganta que me garante que, apesar de tudo, essa vida continuará sendo o que sempre foi.