quarta-feira, outubro 24, 2007

Ambo


A vodca toda secava no chão, contaminada pelo pó de tantos dias que o apartamento ficou fechado. Jogado numa cadeira, os braços pendurados pra trás, sentia escorrer o líquido peito abaixo.

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Na verdade, sou uma pessoa tranqüila na maior parte do tempo. Aquilo que fiz, o caso da morte, foi necessário. Qualquer um faria igual.

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Não havia nitidez em nada. Sabia que aquilo ali era a pia da cozinha, porque era tudo o que existia ali; sabia que aquele som era de passos pisando cacos de vidro, pois o cheiro da vodca invadia meu nariz. Tem horas que nossa percepção nos surpreende.

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Tem horas que nossa percepção nos surpreende. Imaginei que fosse doer, mas não. Sangrou, mas quase não, muito pouco. O corpo ainda estava ali. Sentia o líquido no chão.

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A vida também surpreende às vezes; ao menos uma vez. Lembrei de como teria sido pra outras pessoas, mas creio que não era nada parecido. De qualquer forma, tinha outras dores pra me preocupar... as minhas.

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E agora? Continuar aqui? Minhas preocupações não eram nada de especial enquanto não fosse possível algum movimento. Esperava a depressão pós êxtase, mas ela não chegava.

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Matar ou morrer deve levar ao êxtase. Só não se pode acostumar com isso. Creio que, na verdade, não acostumamos. São fatos, simplesmente.

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Distância daquilo; os pés continuam molhados, pesados. Ajoelho diante do deus morto, morto, na parede. Não rezo e nem peço, não há mais tempo.

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Não há mais tempo. Os pés deixam marcas aguadas e brilhantes no piso claro da cozinha. Lembro de quem sou.

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Penso em quem era. Não importa mais, ficou pra trás. Nem ao menos lembro quem matou.

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Não faço idéia de quem morreu. Será logo, a descoberta?

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Na verdade, não fazemos idéia de nada.

sábado, outubro 20, 2007

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Reclamou do jeito que a olhei. Foi a primeira coisa que fez quando me encontrou. Não tive culpa e nem como evitar. Disse que era melhor não ficar tão nervosa e prestar mais atenção no que estava dizendo. Sim, meus olhos arregalaram naquele momento. O desejo ferveu em meu corpo, como fugir disso? Tive que confessar, ela nem tinha percebido. Tudo bem, que vá embora, não posso fazer nada. Desmentir tudo por conta de seus caprichos? Isso não. Afinal, não fui eu quem expôs aquelas fotos naquele muro do centro da cidade.

Um amigo me ligou. Estava ouvindo música e não quis atender. Apostei que ele não morreria tão cedo.

Todos aqui na cidade reclamam seus direitos. "Meus direitos, meus direitos", eles dizem, mas nem sabem de nada do que falam. Está bom demais, para eles, acolchoarem-se num pano quente após o dia duro de trabalho, desejando ter a certeza de que a noite passará e tudo continuará igual. Não pensam e nem percebem que nenhuma noite passa sã.

Os insanos ficam satisfeitos com suas tochas nas mãos. Usam-nas para ferir um pouco a noite.

Ela tentava dormir, estava ansiosa demais. Nas janelas dos prédios os senhores jogavam água e reclamavam do barulho que vinha da rua. Jovens drenavam garrafas na calçada enquanto dois trabalhadores colavam cartazes no muro.

Catártico, seria esta a palavra para jogar com os cartazes?

A cento e oitenta quilômetros por hora, uma alma chora na rodovia, mas não sabe o porquê. Sente pena dos filhos dos outros motoristas e decide chegar vivo em casa ou em qualquer lugar. Ele sabe que qualquer hora a gasolina acaba, as lágrimas secam, o furor passa. Queria um pouco mais de combustível pra respirar, mesmo que fosse adulterado.

Tentei me convencer de que não eram meus olhos, que tudo era daquele mesmo jeito. Consegui, não eram meus olhos.

Pensei nos homens que colavam os cartazes, nas fotos, no baixo ordenado que receberiam.

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Quando acordei a pequena fresta de luz que entrava pela janela lembrou que era domingo. Senti pena dos filhos dos motoristas, pois seus pais tinham mais o que fazer. Senti medo de todas as crianças, imaginando o que se tornariam quando crescessem.

A empregada tocou o interfone e disse que era hora de lavar os lençóis. Medi meu corpo e calculei a possibilidade de entrar no cesto de roupas sujas. Lembrei que não eram panos meus e que estava num hotel. Deixei as chaves na recepção e saí.

A história das fotos mexeu mesmo com seus nervos; o jeito que andava demonstrava isso claramente. Evitei encontrá-la e entrei num comércio antes que nos cruzássemos. Provavelmente o recepcionista diria que eu acabara de sair. Ela certamente perguntaria se tinha levado meus pertences. Ele diria que não. A garota das fotos correria então ao lugar de sempre, mas eu não estaria por lá.

Os filhos dos motoristas estão em todos os lugares. Não parecem tão coitados, assim de perto. Parecem jovens que gritam com garrafas nas mãos. Deixei de sentir pena deles. Havia uma criança dessas no banheiro, sozinha, caída e vomitando o pouco de noite que passara. Não devia fazer diferença pra ninguém. Mais tarde voltou aos amigos. Sorridente e empolgado, contou todas as aventuras que viveu no banheiro. Desde o vômito até o cara que passou por cima dele sem dar atenção.

As gentes da cidade têm todos os direitos. Miram os olhos no próprio umbigo e ali até enxergam o universo, como dizem por aí. Prefiro observá-las; o jeito como se decompõem com o tempo sem perceber...

Lembro das fotos que se apagarão em uma semana chuvosa. Gostaria de ter evitado, mas estávamos todos ali. Os senhores jogando água pelas janelas, os jovens, os trabalhadores que colavam os cartazes e eu apenas atravessava a rua, não pude evitar. Também nunca apreciei a promiscuidade desses ares que respiramos por aqui, mas como fugir disso?

A duzentos e vinte quilômetros por hora engatilhei minha pistola e dei um tiro no vácuo; o volante do carro solto e uma garrafa entre as pernas. Tentei pensar numa explicação do porquê fazia aquilo, mas não havia resposta, apenas me sentia melhor.

Aposto que existe, neste momento, alguma garota, com seus menos de vinte, chorando em seu quarto por algum amor que nunca existiu; e que todos os garotos se vangloriam diante dos amigos, mesmo que não tivessem satisfeito a mulher. Acredito que os senhores só queriam mesmo era dormir, mas não entendo porque escolheram um apartamento justamente naquela região. Também não entendo como conseguem tantos trabalhadores viverem com tão baixo ordenado. Não sinto nada especial por nada disso, na verdade. Apenas penso que talvez não fossem mais do que simples fotografias.

A recepção do hotel trocou de turno. A nova recepcionista é muda. A garota das fotos senta na calçada em frente, acende um cigarro e observa, no fim da rua, a esquina e o cruzamento com a avenida, reavivando a esperança a cada vulto que aparece na madrugada.

A cento e oitenta batimentos cardíacos por minuto, já se está muito longe e não há mais combustível para voltar.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Erostrato


Comecei a crer que meu destino seria curto e trágico. Isso me amedrontou a princípio, depois me habituei. Encarado sob certo ângulo, é atroz, mas, de outro lado, dá ao instante que passa uma força e uma beleza consideráveis. Quando desci à rua, sentia em meu corpo uma força estranha. Tinha junto a mim meu revólver, essa coisa que explode e faz barulho. Mas não era mais nele que punha minha segurança, era em mim, eu era um ser da espécie dos revólveres, dos petardos e das bombas. Eu também, um dia, no fim de minha vida obscura, explodiria e iluminaria o mundo com uma chama violenta e fugaz como um clarão de magnésio.
Aconteceu-me, por essa ocasião, ter muitas noites o mesmo sonho. Era um anarquista, tinha-me colocado à passagem do czar e levava comigo uma máquina infernal. À hora ajustada, o cortejo passava, a bomba explodia e sob o olhar da multidão nós voávamos pelo ar, eu, o czar e três oficiais com galões de ouro. Eu ficava, agora, semanas inteiras sem aparecer no escritório. Passeava pelos bulevares, no meio de minhas futuras vítimas, ou encerrava-me no meu quarto fazendo planos. Despediram-me no começo de outubro. Ocupava, então, minhas horas vagas redigindo a seguinte carta, que copiei em 102 exemplares.

“Senhor
Sois célebre e vossas obras alcançam tiragens de 30 mil exemplares. Vou dizer-vos por quê: é que amais os homens. Tendes o humanismo no sangue: eis a vossa sorte. Desabrochais quando estais em boa companhia; quando vedes um de vossos semelhantes, mesmo sem conhecê-lo, sentis simpatia por ele. Admirais o seu corpo, pela maneira como é articulado, pelas pernas que se abrem e se fecham à vontade, pelas mãos sobretudo; agrada-vos que haja cinco
dedos em cada mão e que o polegar passe a opor-se aos outros dedos. Deleitai-vos quando vosso vizinho pega uma xícara da mesa, porque ele tem um modo de pegar que é propriamente humano e que sempre descrevestes em vossas obras como menos elástico e menos rápido que o do macaco, não é? Porém muito mais inteligente. Amais também a carne do homem, seu comportamento de um mutilado em reeducação, seu ar de reinventar a marcha a cada passo e seu famoso olhar que as feras não podem suportar. Foi fácil, pois, encontrar a linguagem que convém para falar ao homem de si mesmo; uma linguagem pudica mas apaixonada. Os indivíduos atiram-se com gula aos vossos livros, lêem-nos numa boa poltrona, pensam no grande amor infeliz e discreto que lhes dedicais e isso os consola de muitas coisas, de serem feios, covardes, cornos, de não terem recebido aumento em primeiro de janeiro. E diz-se, de bom grado, de vosso último romance: é uma boa ação.

“Tereis curiosidade em saber, suponho, o que pode ser um homem que não gosta dos homens. Pois bem, sou eu e eu os amo tão pouco que vou, agora mesmo, matar uma meia dúzia deles; talvez vos pergunteis: por que somente uma meia dúzia? Porque meu revólver não tem mais que seis cartuchos. Eis uma monstruosidade, não? Além do mais, um ato propriamente impolítico? Mas eu vos digo que não posso amá-los. Compreendo muitíssimo bem o que vós sentis. Mas o que neles vos atrai a mim me repugna. Vi, como vós, homens mastigarem com moderação, conservando o olho adequado, folheando com a mão esquerda uma revista econômica. É culpa minha se prefiro assistir à refeição das focas? O homem nada pode fazer de seu rosto sem que isso vire jogo fisionômico. Quando ele mastiga conservando a boca fechada, os cantos dos lábios sobem e descem, ele parece passar sem descanso da serenidade à surpresa chorona. Gostais disso, eu o sei, chamais a isso vigilância do Espírito. Mas a mim isso me aborrece. Não sei por quê; nasci assim.
“Se não houvesse entre nós senão uma pequena diferença de gosto, eu não vos importunaria. Mas tudo se passa como se tivésseis a graça e eu não. Sou livre para gostar ou não de lagosta à americana, mas, se não gosto dos homens, sou um miserável e não posso encontrar lugar ao sol. Monopolizaram o sentido da vida. Espero que compreendais o que quero dizer. Há 33 anos que esbarro em portas fechadas sobre as quais se escreveu: 'Se não for humanista,
não entre.' Tive de abandonar tudo o que empreendi; precisava escolher: ou era uma tentativa absurda e condenada ou era preciso que ela redundasse cedo ou tarde em seu proveito. Os pensamentos que eu não lhes destinava expressamente, eu não chegava a destacá-los de mim, a formulá-los; permaneciam em mim como leves movimentos orgânicos. Mesmo as ferramentas de que me servia senti que lhes pertenciam; as palavras, por exemplo: desejara palavras minhas. Mas as de que disponho arrastaram-se por não sei quantas consciências; arranjam-se inteiramente sós na minha cabeça em virtude de hábitos que tomaram nas outras e não é sem repugnância que as utilizo quando vos escrevo. Mas é pela última vez. Eu vos digo: ou amamos os homens ou eles não nos permitem trabalhar a sério. Eu não quero meiostermos. Vou pegar, agora mesmo, meu revólver, descerei à rua e verei se é possível executar bem alguma coisa contra eles. Adeus, senhor, talvez sejais vós quem vou encontrar. Não sabereis jamais com que prazer eu explodirei vossos miolos. Se não — é o caso mais provável — lêde os jornais de amanhã. Lá vereis que um indivíduo chamado Paul Hilbert matou, numa crise de furor, cinco transeuntes no bulevar Edgar-Quinet. Sabeis melhor que ninguém o que vale a prosa dos grandes diários. Compreendei que não sou um 'furioso'. Estou muito calmo, ao contrário, e vos peço aceitar os meus melhores cumprimentos.
Paul Hilbert.”


Trecho de Erostrato, publicado em O Muro, de Jean Paul Sartre.