sexta-feira, junho 12, 2009

Flora e Cântaro


1 – Oi.
2 – Oi.
1 – Tudo bem?
2 – Tudo. E você, tá bem?
1 – É, tô.
2 – Então tá bom.
1 – O que está fazendo aqui?
2 – Aqui? Ou o que estou fazendo?
1 – O que está fazendo?
2 – Poderia ser em qualquer lugar.
1 – É, poderia.
2 – Tá vendo?
1 – O quê?
2 – Percebe que poderia ser em qualquer lugar o que estou fazendo?
1 – Não.
2 – Não?
1 – Não, não percebo.
2 – E por que não?
1 – Não sei o que está fazendo.
2 – Ah, é mesmo...
1 – E então, o que está fazendo?
2 – Estou dando adeus à vida.
1 – Adeus à vida?
2 – Sim, à minha vida.
1 – E por que está dando adeus à sua vida?
2 – Por que está na hora.
1 – Você vai se matar?
2 – Não! Mas que bobagem!
1 – Então você sente que vai morrer?
2 – Não. Não é isso.
1 – Então o que é? Por que dar adeus à vida assim, sem mais?
2 – Estou dando adeus a uma vida para viver outra.
1 – E isso é possível?
2 – Claro que é.
1 – Sem precisar morrer?
2 – Exatamente.
1 – Não entendo. Ah, muito prazer, meu nome é Flora.
2 – Prazer, o meu é Cântaro.
1 – Cântaro?
2 – Isso.
1 – Nome estranho.
2 – Eu sei.
1 – Mas, então, como é que se faz isso?
2 – Isso o quê?
1 – Dar adeus à vida, sem precisar morrer.
2 – É fácil.
1 – Sério?
2 – Sério.
1 – E como é?
2 – É fácil. É só ficar assim, parado, numa noite fria, daí você acende um cigarro e fica mirando os olhos num ponto cego ao longe, de repente você percebe.
1 – Ah, é? Vou tentar.
2 – Pode tentar.
1 – Já estou.
2 – Mas não é assim.
1 – Não?
2 – Não.
1 – Mas não foi assim que você disse?
2 – Sim, foi assim. Mas para dar adeus à vida, primeiro é necessário querer dar adeus.
1 – Mas foi o que eu fiz.
2 – Não, você não fez porque você não quer dar adeus à vida.
1 – Não?
2 – Não.
1 – Como não? Como é que você sabe.
2 – Ora, está na sua cara, Flora.
1 – Está?
2 – Está. Aliás, nesse nosso caso, não é nem na cara que está, nem precisa chegar a tanto.
1 – Onde está então?
2 – Já ouviu falar de uns papos? Esses que dizem que todos nós somos apenas idéias, que não existimos realmente e tudo o que existe é fruto da nossa imaginação, e que a única coisa que possuímos é uma essência eterna e imutável?
1 – Sim, já ouvi falar sobre isso.
2 – Então, o seu nome, que é a sua essência, deixa claro que você não quer dizer adeus à sua vida. Flora, assim como todas as plantas, você vive, revive, sobrevive e insiste sempre em ressuscitar na mesma existência. Não que seja teimosa ou orgulhosa, mas você vive todas as vidas nessa única que você tem e mantém.
1 – E você?
2 – Eu não sou Flora.
1 – Mas o seu nome, que é a sua essência, o que significa.
2 – Meu nome?
1 – Sim.
2 – Cântaro?
1 – Esse mesmo. Tem algum outro mais?
2 – Tento ter outro nome, mas não consigo.
1 – Por que ter outro nome?
2 – Cântaro é um recipiente. Ele carrega água ou carrega vinho. A água carrega vida e o vinho carrega prazer. Mas, quando a vida não quer mais viver, ou quando o prazer é cansativo, o cântaro seca. E quando um cântaro seca, ele não tem mais serventia. E quando não tem mais serventia, dizem que é ruim, pois não quebra. E quando dizem que não quebra é como se quisessem que o próprio cântaro dissesse adeus à vida.
1 – É por isso que tenta ter outro nome?
2 – Mas não consigo.
1 – E é por isso que quer dizer adeus à vida?
2 – Não é que quero dizer, mas creio ser a única serventia neste momento, de tão
seco que estou.
1 – E se te enchessem de água, ou melhor, de vinho?
2 – De tão velho e de tão ruim que não quebro, já percebi que mesmo quando cheio de
qualquer sagrado líquido que seja continuarei sempre a ser Cântaro, é minha essência.
1 – E aquela coisa do cigarro, ficar parado assim numa noite fria e mirando os olhos cegos num ponto longe até que chega a hora que, de repente, você percebe?
2 – Você não percebe...
1 – O quê?
2 – Essa coisa que te disse não existe!
1 – Não?
2 – É claro que não! Senão não estaria aqui, tão velho e tão rachado, sem nunca quebrar, esperando que alguma coisa aconteça, mesmo que distante, que me permita dizer adeus a essa vida. Estaria já estraçalhado e espalhado em mil pedaços pelo chão, esse mesmo chão no qual tuas raízes se emaranham e te fixam.
1 – Bom, por falar nisso, é verdade. Já está tarde.
2 – Sempre é tarde.
1 – Mas preciso ir agora.
2 – Adeus.
1 – Não quer vir comigo?
2 – Vá você.
1 – Tem certeza?
2 – Já te disse adeus!
1 – Então, que continue!

sexta-feira, junho 05, 2009

Palavrório


Olha, escuta, bem sei que não era pra estarmos aqui. E sei bem que, estando aqui, não era pra estarmos do jeito que estamos. Que jeito? Esse, assim como estamos. É que eu não sei como dizer. Aliás, nem sei bem o que dizer. Nós aqui, nós todos, e eu sem palavras. Puxa, que coisa. É estranho. Então... digam alguma coisa. O quê? Não têm nada a dizer? Não? E eu, incomodo? Não? Que bom. Então, como ia dizendo... O que eu dizia mesmo? Nada? Estava enrolando? Acho que eu não sabia o que dizer. Isso! Isso mesmo, dizia exatamente isso. Que não sabia o que dizer! Que engraçado. Espero não estar sendo, neste momento, né?, muito repetitivo. Mas... na verdade... acho que já sei. Necessito alguns segundos.

Desculpem-me pela demora. É que, quando saí, lembrei-me que estava na hora do meu cigarro, o doutor nunca que me perdoaria. Então necessitei minutos.

Ainda bem que continuam aí, todos calados. Será que ainda bem? Ficarmos aqui quietos, contando nas batidas do coração os segundos, minutos, horas, dias, meses e anos e vidas inteiras? Será? Ah, sim! Melhor assim do que se complicar, não é? Fiquemos quietos, então.

...

Queria saber se esse silêncio incomoda mesmo tanto quanto parece. Na verdade, é até confortável, não é? E por que eu não me calo? Não sei.

...

É que não me calo justamente por que não sei se é tão confortável assim. Seus olhares silenciosos já disseram muito mais do que já tentei verbalizar, todo esse palavrório. É, tenho medo de calar a boca e de dizer exatamente o que tem de ser dito com meus olhos, e daí? Meus olhos fogem, não encaram, agradecem quando enxergam imagens que não são agressivas como a maioria, e insistem sempre em serem dispersos. O quê? Nada é tão agressivo assim como penso? Gostaria de saber disso. O quê? E meus olhares também falam? O quanto eles falam? Muito mais do que imagino? Desgraçados delatores. Já que é assim, o melhor é calar-me.