sexta-feira, julho 28, 2006

Quebra-cabeça


Eu, bêbado.
Ela deita sobre o meu peito conversamos e dormimos.
No meio da madrugada ela levanta, tem de ir embora.
É provável que eu esteja ainda na mesma posição, nessa hora.
Deitado na cama, do mesmo jeito.
Ela olha, coitado de mim.
Sem mexer comigo, toma um banho, troca suas roupas, conta o dinheiro para o transporte, olha as horas e, quando pode, fica olhando mais um pouco o meu corpo imóvel na cama, na tranquilidade de sonhos que talvez depois eu lembre ou invente.
Quando a hora já está atrasada ela vem - posso sentir o calor dela antes mesmo de me tocar - e me beija um bom dia e me dá um sorriso e pede pra eu levantar e trancar a porta.
Pede duas vezes ou três.
Eu nunca quero levantar, mas acabo cedendo.
Ela sai rápido, mais um beijo e tudo o que sobra é o corredor e a luz do sol lá fora na minha vista embaçada.

Eu volto correndo pra cama e sinto frio.
Há quanto tempo estou assim sozinho?
Não penso muito nisso. Olho em volta, o quarto, as cortinas, minhas coisas todas jogadas pelo chão enquanto, paciente, a mesinha de canto quase vazia me oferece o cinzeiro e o maço de cigarros.
Deitado, quase acordado, observo a fumaça do cigarro subindo tranquilamente ao teto.
A calmaria é convite a fechar os olhos e pensar.
Pensar bastante até sonhar.
Coisas que depois talvez eu lembre ou invente.
Histórias sem sentido, tão parecidas com a vida.
Fatos desconexos, idéias brilhantes que se perderão.
Lugares estranhos, diálogos perfeitos.
Uma coleta de sensações.
Um quebra-cabeça de tudo o que se pode imaginar.
Mas tenho que tomar muito cuidado pra não incendiar o colchão com o meu cigarro.
É um apartamento tão agradável...

segunda-feira, julho 17, 2006

Sei que está um pouco tarde, mas segue abaixo cartaz do outro sarau, que vai acontecer lá no Gruta Bar.

Fiquem à vontade para participar.
Próximo sábado, dia 22, às 21:30hs.
O Gruta Bar fica na Rua Major Quedinho, 112-A. Ao lado do prédio do Diário de São Paulo (antigo Diário Popular), pertinho do Metrô Anhagabaú.
Participem!

Abraços!!

quarta-feira, julho 05, 2006

Pastores, ovelhas, ratos...


Sigo andando pelas ruas, e por mais redundante que possa ser, insisto em afirmar que tudo por aqui é podre. Sigo meu caminho por isso. O ar denso e gelado da noite invade meu corpo disputando os espaços com a fumaça do cigarro. Meu pulmão não falha, minhas pernas não reclamam, meu corpo não sente frio. Continuo porque tudo ao redor é podre e não haveria motivos para parar, embora também não haja motivos pra continuar. Minha vida faz parte da sujeira e é só o que basta. Nos igualamos, aqui embaixo, aos ratos. Cavamos fundo os caminhos ou então utilizamos os bueiros e o esgoto mesmo. Passamos correndo pelas ruas para que ninguém nos veja. Estamos sempre atentos para qualquer imprevisto. Sempre em estado de alerta. Tudo isso para conseguir o básico que nos alimenta e prosseguirmos. Ou então, melhor ainda, tudo isso para conseguir qualquer coisa que prepare nossas mentes para suportarmos mais uma noite e um dia. Talvez mais um dia. Ou alguém pensa que os ratos correm apenas por alimentos? Não... corremos para mais que isso. E, seguindo por qualquer rua que a noite me trouxer, posso encostar minhas lástimas num balcão de bar, tomar algumas doses e voltar pra correria, passando pelos becos, pelos cantos, pelas sombras. Carregando apenas o peso do céu, o desespero de viver e a contraditória vontade de continuar sobrevivendo. Um dia mais, talvez. Apesar de desejarmos que toda noite seja sempre a última, ainda resta a esperança para mais um dia. Resta a vontade de dormir, perder a aurora, sempre tão melancólica, e acordar num dia novo, cheio de milagres, repleto de escolhas apetitosas... Na verdade, resta só a esperança! E é por isso que nós, os ratos, nos escondemos das primeiras claridades dos dias. Nos escondemos, dormimos e acordamos somente depois da primeira certeza de escuridão. Nos escondemos dos dias porque estamos de saco cheio de ouvir falar de esperanças. Queremos matar agora a nossa fome, e temos a urgente necessidade, todos os dias, de nos livrarmos da letárgica atmosfera que preenche quase todos os espaços. Por isso circulamos por entre o lixo, em locais podres e mal iluminados. Queremos escapar da mansidão do mundo e de todos os seus caminhos previsíveis, pois não somos ovelhas e não acreditamos nos pastores. Escavamos, por baixo, nossos próprios desejos e paramos pelos bares pra descansar e tomar alguns tragos. É dali que sai nossa música, nosso teatro, nossa literatura. Nossa arte e política. Nossas discussões, brigas e amizades. E nunca adiantou tentar explicar para o mundo o que é isso. Ovelhas e pastores nunca entenderão nada sobre ratos. Nunca entenderão meus olhos vermelhos do vento frio da noite, enquanto desço as ruas cambaleando. Dirão que sou mais uma alma perdida. Sempre se enganam. Pois nem sou alma e muito menos perdido. Conheço meus caminhos, apesar de não ter decidido ainda por onde vou. E, vantagem minha, conheço os seus caminhos também, oprimidas ovelhas. São a mesma coisa, a minha sarjeta e o teu “conforto”. A diferença é que vocês ficam aí e falam, sem saber exatamente o quê. Nós seguimos por aí e comemoramos todas as noites o fato de estarmos à parte do seu universo de servidão inconsciente. Menos que isso, comemoramos, lamentamos e brindamos à vida, simplesmente, enquanto estivermos vivos. Apenas seguimos andando pelas ruas podres às noites. Sem segredos, sem mistérios.