quarta-feira, novembro 26, 2008

Protopoema, de José Saramago, do Provavelmenet Alegria.




Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.

José Saramago - Fala do velho do Restelo ao astronauta


Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

segunda-feira, novembro 03, 2008

In a Silent Way



In a Silent way

O baixo dita o ritmo. Parece um lento coração que não se apressa em gastar todas as batidas que lhe foram prometidas ou garantidas. Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... É noite. Chove. E chove lento. As gotas todas desenham um jogral móvel de poucas e contrastantes cores. O azul marinho, quase negro, que desce do céu, e o reflexo amarelado da iluminação que desce dos postes. É um jogral sépia. Lento e sépia. E pulsa. Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... Teclados ao fundo lembram buzinas e sirenes bêbadas. Bêbadas e muito mais convincentes do que quando sóbrias. Mas apenas lembram, parecem. Estamos num silencioso caminhar. Lugar quieto. Lugar surdo. De nada adiantaria gritar, nem buzinar e nem sirenar. Serenar, talvez. E ao lado das buzinas e sirenes vem também um tilintar metálico. Seria o platô dos veículos das buzinas, ou o prato metálico chiante da bateria? A bateria, não aquela que morre, mas aquela que ministra o ritmo. Ministra, pois o ditador já temos, já foi dito: Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... Dum duuuuum... No meio do ritmo ditado e do lento jogral móvel que a chuva pratica com a luz dos postes; e no meio de buzines e sirenas e do chiado ministrante da bateria; no meio de tudo isso meus pensamentos seguem as pegadas das idéias de um trompete. Também ele bêbado. Também eu trompeteando pelas pedras do caminho. Mas a chuva está ali para lavar todo o pó de cada queda.

Vira o disco.

Mentira. Mentira das mais normais quando dizemos que, sim, nos lembramos de cada queda. Mentira. Mal nos lembramos, agora, qual era o ritmo cadente. O trompete continua. Nos esquecemos até em que número estávamos trabalhando qualquer pronome até este momento. Mas quem se importa? Ouça. Creio que seja aquela tímida, mas segura, caixa da bateria. Se não me engano, os teclados jã não estão assm tão bêbados. Parece até que o baixo-ditador foi deposto. E agora só gagueja: du-du duuumm... du-du duuumm... du-du duuumm... du-du duuumm... E só larga da gagueira para acompanhar a dança dos teclados. Mas ali vem novamente o trompete que incentiva o jogral da chuva. Imagens e mais imagens, feito televisão, feito holograma e ninguém mais pra ver. E a bateria, que ministra, fala um pouco mais alto, faz pular um tanto mais forte o coração. Mas depois vai, deixa. Serenes, seguimos o caminho. É noite. Noite silenciosa. E chove. Chove lento. Se houvesse mais alguém por ali, alguém que não tivesse medo de silêncio e nem de se molhar, acreditaria no quão vagarosa chovia aquela chuva. Lenta, mais ou menos, como a vagarosidade do escorrer de algumas lágrimas. Aproximadamente dois terços de hora para escaparem das pálpebras e escorrerem através do rosto até o salto do queixo, indecisas em cair, acompanhando a incansável repetição do vai e vem da agulha no miolo do disco.

Ainda chove.