sexta-feira, março 06, 2009

Eu e o macaco.



Nenhuma percepção de mundo é perfeita, completa. A minha, garanto, é falha, é meia. Culpa minha, claro. Não tenho o olho direito por um equívoco que cometi. Uma macaco o arrancou, desses macacos de programas de televisão e circo.

Estive num desses eventos e, no fim do espetáculo, quis conhecer os bastidores. Ele estava solto e quieto, agachado em um pequeno banco, com as mãos dadas entre as pernas. Observava o movimento, distraído. Cheguei perto me abaixei e olhei nos olhos dele, que me responderam. Disse em voz alta, para que ele entendesse, que queria descobrir no que estava pensando. Estavam marejados e eram profundos e misteriosos, surpreendentes, fascinantes. Pareciam humanos e acho que quase conseguiria penetrar em seus pensamentos. Não imaginava que tal atitude, fitar assim procurando desbravar e conhecer, não era bem-vinda entre macacos. Foi tarde quando percebi a imensa ira que emergia do mar de seus olhos, não tive tempo de esquivar. Um guincho e dois dedos em meu olho direito.

O que fiz, para ele, o macaco, era agressão. E ele me respondeu. Socorreram-me ao hospital, pagaram-me indenização e tudo o mais que situações desse tipo exigem.

Demorou um pouco, mas consegui me acostumar com essa situação quando finalmente percebi que essa falha e meia percepção, a da falta do olho e do olhar completo, já era corrente em meu viver. Isso foi a tempo de livrar o macaco do sacrifício. Até pensei, durante dois ou três minutos, em adotá-lo. Era o macaco que abriu meus olhos para o que não viam! Mas logo percebi que poderia estar errado. Minha percepção das coisas continuava a mesma, falha, e, afinal, nunca sobe de ninguém que tivesse entendido as motivações e intenções de nenhum macaco. De baleias e golfinhos, talvez, mas essas são fáceis. Macacos são mais complexos. Eles têm olhar e lacrimejam. Resolvi não arriscar. Depois de participar de alguns programas de televisão foi lacrado em um zoológico e não soube mais dele.

O lugar onde deveria estar meu olho direito é feio, pra quem olha. Tem uma prótese, não outro olho artificial, apenas um material que isola e protege o oco da minha cabeça. Às vezes, no espelho, lembro que me assombrei com a profundidade do olhar do macaco... O meu, agora, é muito mais profundo. Ao menos o olhar direito.

Mantive meu emprego na mesma empresa, mas não com a mesma função. Antes vendia sapatos, ou calçados, que não eram somente sapatos. Agora trabalho no estoque. Não disseram a razão, mas eu vejo, no espelho. Essa mudança não me abalou, embora não possa negar que gostava muito mais e até sentia prazer em trabalhar na loja. Era bom. Atendia a freguesia e sempre tentava adivinhar qual era o gosto do cliente. Um sapato, um tênis, uma sandália. Algo confortável, algo barato. A cor, o modelo. Alguns tinham vergonha dos pés e do chulé. Apareciam, claro, pessoas com pés realmente feios e outras com pés muito bonitos também. Mas não era para julgar esse tipo de coisa que eu estava lá. Estava lá para ajudá-las. Imagino o que seria se um veterinário tivesse medo ou não gostasse de certa raça de certo animal; ou se um médico tivesse fobia a sangue; ou se um contador, sendo pessoa de números pelo ofício, tivesse medo deles; ou se uma pessoa de letras, e sendo-a pela vida, tivesse pavor de palavras feias ou erros de ortografia. Imagino o que seria... É como se um piloto de avião tivesse medo das alturas e como se ele nunca tivesse pesquisado sobre grandiosos acidentes aéreos que se resumem ao mínimo, ao chão. Eu era um vendedor de sapatos e estava preparado para as tragédias do meu ofício. Quanto ao chulé, para animar o cliente, eu sempre lembrava que nós, vendedores de sapatos, também o temos, e geralmente mais forte e difícil de suportar, pois nossos narizes, de tanto trabalhar, já estavam calejados, tinham perdido a sensibilidade.

Eu gostava, era bom trabalhar na loja. Agora estou no estoque, e sem um olho. E são tantos pares... tantos pares... Isso dói às vezes. Quando o movimento está fraco e eu fico com poucas demandas no estoque, olho para aquelas caixas, uma por uma com a certeza de que há sempre um par em cada uma delas. Sempre. Nunca um trio e nem um sólo. Sempre um par. Daí eu penso em para quem este mundo é feito. Não para mim ou pessoas como eu, tenho certeza. Se a pessoa não tem uma perna, pagará o dobro quando comprar um sapato ali na loja. Eu, pelo menos, posso aproveitar as duas lentes de contato. São muito mais econômicas, dessa forma, e eu não quero usar óculos, seria ridículo. Mesmo que fossem escuros e escondessem minha cavidade direita. Na minha visão seria, a lente direita, uma redundância.

Me perdoe, queria dizer uma coisa e uma coisa sempre puxa outra e que tenham paciência as pessoas mais objetivas, que é isso que sempre dizem e todos sabem. Comecei dizendo que nenhuma percepção é perfeita, completa. Foi isso o que comentei com um cliente esta manhã, na loja de sapatos. Sendo estoquista, não tenho certeza se é essa, a palavra estoquista, a que designa minha profissão, e nem se é essa, a profissão, minha vocação, mas é isso que sou, por enquanto, para todos os efeitos. Voltando: sendo estoquista, por profissão, sou o responsável de trazer os pedidos das caixas de pares de sapatos do estoque à loja. Alguns deles, os clientes, que é profissão de todos sermos clientes de alguma coisa. Alguns deles, como dizia, saem correndo, horrorizados, quando me vêem; outros apenas desistem da compra e saem devagar; alguns fingem que não viram que viram a falta do meu olho direito no lugar direito onde ele deveria estar; existem os que nem percebem essa falta. E teve esse que reclamou que eu trouxe a caixa com o par de sapatos de número errado. Talvez não coubesse no pé dele. Fez um escarcéu, me chamou de caolho e essas coisas. Não respondi. Não pelo emprego, não tenho medo de perdê-lo. Trabalho muito bem no estoque. Não respondi apenas porque pensei que a vida daquele homem devia estar um inferno, e eu não queria piorar isso. No fim das contas, quando meu gerente veio socorrer o cliente, eu trouxera o número certo. Ele é que tinha a vista e a vida ruim por conta da idade ou da vida mesmo e enxergou o que não era. Foi nessa hora que fiz esse comentário sobre essa coisa da percepção. Ele desistiu da compra, disse que aquilo era uma absurda falta de respeito e foi embora. Pensei por um instante em ir atrás dele e me desculpar, mas instante depois achei melhor que não. Nossa percepção nunca é perfeita, e a minha, pra piorar, é falha e meia. Achei que não.

Sempre soube de muitas pessoas que tentaram entender as motivações e intenções dos seres humanos. Até de baleias e golfinhos. Mas os seres humanos são mais complexos. Têm alguma coisa que, até se tivéssemos um olho a mais, não conseguiríamos enxergar. Não sei e nem ouvi falar de ninguém que tivesse conseguido. E, além disso, não podia me preocupar com essas coisas, tinha mais cinco caixas de pares de sapato para descer do estoque.

5 Comments:

Blogger MAO said...

Mafra

Caralho... o conformismo das suas personagens é foda... como se eles tivessem perdido uma coisa grande lá atrás... e agora desistiram sabe? não se importam mais...

É até perigoso ler seus textos num dia ruim...

Estava sentindo falta deles...

Abraço...

sexta-feira, março 13, 2009 12:02:00 PM  
Blogger Larissa Simioni said...

Hey,

Sou amiga do sujeito acima...rs! Realmente os seus escritos sao dignos de admiracao!
Tratam, exatamente, das personagens que as pessoas construiram e se atem a viver em um mundo tao desumano.
O grito de consciencia nao submergiu em sua mentes e creio que nao ocorrera!
Parabens

Beijos

sexta-feira, março 13, 2009 5:06:00 PM  
Blogger Alessandro said...

Nossa vista é falha e meia, camarada. Falha e meia. Mas do texto, eu gostei.

Abraaaaaaaaço!!

sexta-feira, março 20, 2009 9:30:00 AM  
Blogger Tatta barboza said...

Puxa!

A realidade é foda! E não existe visão de mundo perfeita... A personagem é de uma visão imperfeita e ampla. Muito bom o texto!

sexta-feira, março 20, 2009 10:40:00 AM  
Blogger Alessandra Queiroz said...

Como pode dizer que não encontra mais as palavras, se elas fluem no seu pensamento e em sua escrita, texto foda como tudo que você faz!

biseaus amor,

Ale

terça-feira, maio 05, 2009 5:33:00 PM  

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