sexta-feira, novembro 16, 2007

Complexo




Os dois entraram.
Se encontraram numa festa, num bar.
Ela já estava bêbada.
Ele ainda estava bêbado.

- Nossa! Que apê bacana você mora!
- É alugado.
- Mas é bacana!
- Pois é.

Ela explorava todo o apartamento.








- Nossa! Tem até bidê!
- Está quebrado.
- Ah! Eu mandaria arrumar!
- Eu não preciso disso.
- Ah! mas mesmo assim. Vai que você encontra alguém e traz pra cá, igual hoje...

Ele não precisava daquilo. Ela sentou-se na mesa da cozinha, era pequena. Acendeu um cigarro.

- Hoje é feriado, não é?
- Hoje é domingo.
- Mas mesmo assim, é feriado. Do que que é mesmo, hein? E hoje não é domingo, é sábado.
- Já é domingo.
- Ah! Eu só considero que o dia passou depois que eu durmo.

Ele não disse nada, não precisava daquilo. Foi até a geladeira e trouxe uma garrafa de cerveja até a pia.

- Cuidado com essa faca! Você não tem um abridor?
- Tenho essa faca.
- Você perdeu o abridor?
- Tenho essa faca.
- Cuidado!

Ele não precisava daquilo.

- Vou até o bar. Não tem cerveja.
- Como não tem? Você acabou de abrir uma!
- Pois, é. Não tem. Já volto. Não mexe em nada.
- Se quiser pode ir com o meu carro!

Ele foi até a sala, pegou as chaves do carro na mesinha e tentou abrir a porta com elas.

- Pegou as chaves do carro?

Ele não ouvia. Não precisava daquilo. Voltou até a mesinha, jogou as chaves do carro e pegou as da porta.

- Não demora!
- Não mexe em nada.
- Tá bom, tá bom! Já sei!

Ele chamou o elevador, uma eternidade, mas ele gostava do vento frio que a porta soprava pela janelinha. Não conseguia completar nenhum raciocínio. Não sabia o que era bom ou mal pra sua vida. Sabia apenas do que era desnecessário e do que não era.


Não ficava perto o bar no qual ele tinha uma conta pendurada, mas um carro não era necessário. Era um bairro escuro, quase feio. Nas madrugadas pequenos botecos ficavam acesos durante o caminho e, em volta deles, como mariposas, homens feios e mal encarados encaravam feio qualquer homem que passasse. Queriam preservar seu território. Olhavam como quem olha uma barata no canto da cozinha, dando um tempo pra ela se calar e se esconder. Se demora muito ou não se cala, eles esmagam.

“Fiado de novo?”, gritou o dono do bar, reclamando.

- Fiado não. Tem minha conta aí, você não sabe?
- É claro que sei! Eu que fui o luco que abri essa conta pra você!
- Não se preocupa, dia cinco está chegando.
- Hoje é dia vinte e um!
- Está chegando, a cada segundo.
- Vai, filósofo! Vou aliviar pra você porque você paga em dia. Se fosse o corno do...
- Puta, cara, não quero saber de ninguém.
- Ô, calma aí! Vai o de sempre?
- Quatro.
- Só quatro?
- Já bebi hoje.
- Saindo quatro então.
- Valeu. Até dia cinco.
- Até amanhã!

No caminho de volta, os mesmos caras mal encarados. Existia também por ali uma loira. Grande, bonita, gostosa, um pouco acabada pela vida, mas sedutora. Ele sabia que não era uma puta. Outra noite tinha visto um cara ser espancado por outros três. O cara tinha feito uma proposta de cento e cinqüenta contos. Levou porrada. Uma puta naquela área não valia nem dez. A loira não era puta. Chegou a pensar que talvez fosse mulher de algum traficante. Mas mulher de traficante não fica na boca, e aquilo ali era quase a garganta do negócio. De qualquer forma, ele nunca ligou para as cantadas que ela passava.

- E aí, filósofo! Fiquei sabendo que é esse o seu apelido. E hoje, tá sossegado? Vai recusar minha proposta outra vez? Por que você nunca fala comigo? Responde pra mim só desta vez!

Ele parou. Não precisava daquilo. Voltou primeiro a cabeça, depois o resto do corpo, olhando fixo nos olhos. Chegou a sete centímetros da loira e respondeu.

- Barata.

A loira não entendeu. Ninguém que estava por perto se divertindo com a situação entendeu. Não apareceram três caras para socá-lo. Ele seguiu seu caminho. Não sabia o que era bom ou mal pra sua vida. Sabia apenas o que era desnecessário e o que não era. Não precisava daquilo. Seguiu seu caminho com as quatro garrafas de cerveja.

Entrando no apartamento, ela ainda estava na mesa da cozinha, fumando. Não tinha mexido em nada e ele ficou satisfeito com isso.

- Nossa! Como você demorou.
- Pois, é. Nem percebi.

Deixou as quatro garrafas na geladeira e terminou o que restava daquela primeira, que já estava quente, pelo gargalo mesmo.

- Tem copo aí!
- Eu sei.
- Você tá com uma cara!
- Pois é.
- Aconteceu alguma coisa?
- Você mexeu em alguma coisa?
- Não. Fiquei aqui sentadinha.
- Então não aconteceu nada.
- Mas você tá com uma cara!
- Pois é.

Ele não precisava daquilo. Não precisava dela ali. Precisava apenas ficar sozinho. Ficar sozinho tomando cerveja. Uma garrafa apenas bastava, se estivesse sozinho. Mas ela estava ali. E ele não precisava de nada daquilo.


- Você tá com uma cara feia mesmo! Aconteceu alguma coisa?
- Nada.
- Tá se sentindo bem?
- Não.
- Que aconteceu?
- Nada. Eu geralmente não me sinto bem.
- O que você tá sentindo?
- Nada.
- Ei. Responde pra mim.

De novo, a mesma coisa. Ele respondeu.

- Estou me sentindo como se tivesse me transformado numa barata.

Ele disso isso só por falar. Não esperava retorno algum. Mas falava sobre se sentir pequeno, sobre a vontade de se esconder, de desaparecer debaixo de algum móvel da sala, enfiar a cara na parede e esquecer do mundo. Era sobre isso que ele falava.

Ela respondeu.

- Nossa! Uma barata? Igual o Kafka, né?

Ele se surpreendeu. Olhou num silêncio os olhos dela e pensou: “Desgraçada! Você estragou tudo! Era só ficar calada!”. E depois disse.

- É, igual o Kafka.
- Ah! Eu sabia! O meu irmão, o Pitoco... a gente chama ele de Pitoco porque ele é o caçula. Ele chama Mateus, na verdade. Ele já leu esse livro e depois me contou a história. Contou que é a história de um homem que vira barata e expulsa toda a família de casa e depois vira o rei do lar. Tem a ver com capitalismo, não é?

Ele não se decepcionou. Ele não deu risada. Nunca gostou de sorrir na frente de pessoa qualquer.

- O Pitoco já leu muitos livros?
- Ele vive lendo. Depois conta as histórias pra mim.

Ele só perguntou pra confirmar. Ela mudou de assunto.

- Diz pra mim uma coisa... lá na festa... por que você me escolheu?
- Eu te escolhi?
- É, você!
- Como assim eu te escolhi?
- Ah! tinha aquela ruiva chapada dando em cima de você. Até que era bonita. Por que você me escolheu?

Não tinha ruiva. Não tinha nada, ele queria apenas voltar pra casa e ficar sozinho. Ficar sozinho tomando cerveja. Mas essa garota foi atrás. Foi e ele não impediu. Ele não sabia o que era bom ou mal pra sua vida. Só que por alguns instantes esqueceu o que era desnecessário.

Ele respondeu.

- Eu te escolhi e não escolhi a outra, a ruiva, porque ela me disse que Kafka era algum tipo de churrasco.
- Ah! Ah! Ah! Que engraçado!
- Você acredita?
- Bom, pelo menos você escolheu a mais inteligente! Não é?
- Pois é.

Ele sabia que ela não era nada inteligente. Sobre a ruiva, era apenas uma piada irônica. Ele não precisava daquilo. Sabia que a garota só queria sexo e talvez ficar no apartamento. Ele queria apenas ficar sozinho. Não precisava daquilo. Nem dela e nem de sexo.

- Vamos pra sala? Já conheço muito bem sua cozinha!

Ele abriu outra cerveja.

- Lá é mais confortável, você não acha?

Ela queria sexo mesmo, mas já estava sonolenta. “Mais uma garrafa e ela dorme”, ele pensou. Era a sua esperança.

Serviu a cerveja. Ao lado dela, no sofá.

- Então, quer saber?

Ele não queria saber. E quanto mais ela bebia, mais falava.

- Blá, Blá, Blá. Blá, Blá, Blá, Blá. Blá, Blá, Blá.

Ele não ouvia, mas repondia.

- Pois é.
- Blá, Blá, Blá. Blá, Blá, Blá, Blá. Blá, Blá, Blá.
- Pois é.
- Blá, Blá, Blá. Blá, Blá, Blá, Blá. Blá, Blá, Blá.
- Pois é.
- Blá, Blá, Blá. Blá, Blá, Blá, Blá. Blá, Blá, Blá
- Pois é.


Ele não precisava daquilo. Não suportava mais aquilo. Percebeu que a bebida não resolvia e se entregou: “Porra! Eu faço sexo com ela logo e acaba tudo isso. Se for bom, eu durmo e ela se cala. Se não for, eu durmo de qualquer forma.”. Foi o que ele pensou. Buscou mais outra garrafa. Não serviu, tomava no gargalo. Sentou mais pero dela, colocou as mãos em suas pernas e, fazer o quê?, iniciou o ritual. Ela sorriu de início. Depois olhou pra ele.

- Nossa! Que cara é essa?
- Que cara?
- A sua!
- É a minha.
- Nossa! Desculpe!
- O quê?
- Você tá com uma cara!
- De novo?
- Não, tá diferente!
- É a minha.
- Acho melhor ir embora. Acho que é bom você quer ficar sozinho.
- Quê?!
- É sério, desculpa! Só vou pegar minhas coisas.

Não houve despedida. Ela saiu e ele esperou pra trancar a porta. Ela não chamou o elevador e desceu pelas escadas. Ele pensou no ventinho da porta do elevador. Quando ela desapareceu no segundo lance de degraus, ele trancou a porta.

Atravessou a sala e chegou à cozinha. Sentou numa das cadeiras da mesa, acendeu um cigarro e terminou o que restava daquela garrafa de cerveja. Ficou ali um tempo.

Entrou no chuveiro e deixou a água morna cair pelo seu corpo durante dois minutos, depois se masturbou.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Esse saiu da matéria mais prima que é sua essência, seu ócio.

Parou, escreveu, bebeu, sorriu.

O dia do nascimento deste conto também poderia virar um conto, mas, ainda bem que é realidade, vida, corrida mais muito amada!

O conto tem seu toque bem machista, característica que não encontro em você, mas, o bacana é que este conto pode ser colocado na situação inversa sem nenhuma restrição!

Biseaus

sexta-feira, novembro 23, 2007 5:56:00 AM  

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