quarta-feira, outubro 18, 2006

Curta


Em primeiro plano, apenas o rosto do marido, olhando num ponto for a do quadro, com cara de espanto.
Atrás, em segundo plano, a esposa volta do banheiro (ou de qualquer outro lugar), encontra uma amiga de longa data. Na verdade, nem tão amiga assim, mas as duas mantêm a aparência:

- Oi, querida, como vai?
- Vou bem! E você? Pelo visto está ótima!
- Ai, obrigada! Você também, está linda como sempre!
- Obrigada! Bom, já vou indo!
- Mas já? Nem paramos pra conversar!
- Sim eu seu, mas tenho que ir. O Alfredo está sozinho...
- Ah, tá! Já entendi! Você não muda mesmo, viu! Tudo bem, vai lá, depois a gente conversa. Beijo!
- Beijinho, até logo!

A esposa caminha até Alfredo. No caminho olha pra ele e, disfarçadamente, para a direção que ele está olhando, ainda com a mesma cara de espanto.

- Demorei, Alfredo?

Ele continua com a mesma cara embasbacada.
Ela, já impaciente:

- Demorei, Alfredo?

Ele pisca os olhos e continua na mesma.
Ela afaga-lhe o ombro com um sorriso sádico durante alguns segundos. Depois, com os dentes cerrados, repete:

- Demorei, Alfredo?

- E dá-lhe um tapa no ombro.
- Oh, queirda, já voltou?

A esposa, com calma dissimulada:

- Já voltei, sim, Alfredo. Tudo bem por aqui?
- Oh, sim, sim, claro! - ainda olhando o mesmo lugar

Ela permanece calada alguns segundos. Olha para o rosto do marido e, descaradamente, olha novamente para a direção da qual os ohos dele não desviam.

- Tudo bem mesmo com você, amor?
- Ah, sim, claro. Acho que está tudo bem.
- Está olhando o quê?
- Ãh...? Não, quer dizer... que foi?
- O que você está olhando?
- Nada, é que...
- “É que” o quê, Alfredo?
- Estou olhando...
- Eu sei muito bem o que você está olhando, Alfredo! Você está olhando aquela mulher ali! Aliás, está olhando há quase duas horas! Você não tem vergonha nessa sua cara, Alfredo?
- Não, é que... quer dizer, tenho vergonha, sim! Você não está entendendo...
- Claro que não estou!
- Então, calma! Vem aqui. Olha pra ela!
- Olhar? Que olhar o quê? Me diz uma coisa, o que te deu na cabeça, Alfredo?
- Calma aí, vem aqui! Olha pra ela, vai. Não estou brincando, é sério! Olha só pra ela, que coisa estranha!
- Estou olhando e não tem nada de estranho, é uma mulher normal! Tão bonita quanto eu, por sinal.
- Ai, meu deus! Não estou falando disso! Olha pra ela, por favor! Presta atenção, não está vendo nada estranho?
- Além do fato de você não tirar os olhos dela, não há nada de estranho, Alfredo!
- Olha direito! Olha a cabeça dela!
- A cabeça? O que é que tem a cabeça? Lá vem você com as suas maluquices de novo! Que diabos de estranho tem a cabeça dela?
- Olha a cabeça dela! Olha! Olha o cabelo dela!
- Que que tem?
- Olha o cabelo dela! Não tá vendo?
- Não tô vendo nada de mais, Alfredo!
- Exatamente!
- Exatamente o quê? Ai meus anjos...
- Exatamente isso! Você não vê nada! Repara bem, ela não tem orelhas!!!
- O quê?
- (pausadamente) Ela não tem orelhas!
- Ah, por favor, Alfredo, não me venha com as suas maluquices outra vez!
- Eu estou falando sério, não me chame de maluco! Olha lá, ela não tem orelhas! Olha o cabelo dela, olha lá! Ela não tem orelhas e está escondendo isso de todo mundo!
- Alfredo, não vou discutir! Fala só uma coisa pra mim, se ela não tem orelhas, como está conversando com aquelas pessoas? Nem me fale que é por leitura labial, pois agora há pouco ela atendeu o chamado do dono da festa, que estava atrás dela, do outro lado da sala.
- Não estou dizendo que ela é surda, estou dizendo que ela não tem orelhas! E ela não tem orelhas, obviamente, porque é uma alienígena!
- Ai, meu deus, homem! Ficou maluco?
- Não me chame de maluco!
- Como não? Presta bem atenção no que você disse! Disse que a mulher ali não tem orelhas e que por isso ela é uma alienígena! Ouviu? Não parece um tanto estranho?
- Foi o que eu disse! É muito estranho! O que ela veio fazer aqui sem orelhas?
- Ai... O que eu fiz pra merecer isso?
- Calma, querida. Parece-me que ela não é hostil. Não vai nos fazer mail. É só a gente ficar aqui quieto e não demonstrar que sabe do segredo dela.

A mulher olha pro chão, com cara de desespero, sem saber o que fazer com as maluquices do marido. Depois de algum tempo diz:

- Alfredo, se eu te mostrar que aquela mulher tem orelhas, você jura pra mim que para com essa paranóia?
- O que você quer provar? Olha pra ela, a cabeça dela, o cabelo... é evidente que ela não tem orelhas! Está mais do que provado! Além disso, o que você quer fazer? Quer chegar lá e perguntar “com licença, mas onde a senhorita deixou as orelhas hoje”? Você é que tá maluca!
- Alfredo, essa foi demais! As orelhas estão lá e eu vou te mostrar agora!

Ela sai andando em direção à tal mulher, mas ele segura o seu braço, numa atitude receosa, com medo do que pode acontecer.

- (energética) Alfredo, solta o meu braço e vem comigo!!!

Ele obedece e sai logo atrás dela.


Ela:
- Oi, querida, com licença...

Ele treme.

A tal mulher:
- Sim, claro!
- Posso dar uma olhada nos seus brincos?
- Claro - e puxa os cabelos para trás.

Os brincos estão lá, com todas as orelhas.

- Ora, são lindos! Desculpe incomodar, mas tenho essa mania. E quando te vi, soube de início que seu único pecado é o bom gosto! Adoro brincos, sabe? Você é linda, baby. Muito obrigada e até logo!
- Obrigada pelos elogios! Até logo!

Sai puxando o marido, que volta com uma cara de espanto ainda maior.
Ela está triunfante.

- E então, Alfredo?
- Você viu as orelhas dela?
- Claro que vi! E você também viu, all right?
- Você viu as orelhas dela?
- Já disse que sim!
- É que...
- É que o quê?

Com o olhar vago no chão, ele pensa durante alguns segundos.

- É que o quê, Alfredo?
- É que... você viu as orelhas dela?
- Eu vi as orelhas dela, você também viu e vamos parar logo com isso, Alfredo!
- Então... as orelhas...
- As orelhas?
- É que...
- O quê?

Segundos de silêncio, suspense.

- Acho que são postiças...

O quadro fecha no rosto do marido, com o olhar vago no ar, pensando, e um mínimo sorriso de certeza. Em segundo plano, a mulher leva uma das mãos à testa, incrédula, e sai de cena. Fecha o quadro ainda mais no rosto do marido. Ele ainda com o mesmo olhar, o mesmo sorriso e a mesma certeza.
Sobem os créditos.

2 Comments:

Blogger Alessandro said...

A princípio pensei em Bergman, mas com o teor da narrativa, cheguei a conclusão que Lynch é mais a cara desse texto. Quem sabe, de repente, ele não gostaria de ter a honra de filmar este episódio? Eh eh eh!

Abração, de novo!

quinta-feira, outubro 19, 2006 1:56:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ra e Ale-hermanito! mandou muito bem, Lynch adoraria!!! e nós também né!!!

biseaus

Ale

quinta-feira, outubro 19, 2006 4:45:00 PM  

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