segunda-feira, abril 30, 2007


Nunca poderíamos dar a isto o nome de invasão, o que essa criatura fez.

Como todas as noites, este inquilino esquecera abertos os trincos da porta do apartamento e apressara-se em abrir a garrafa de vinho que trazia para ouvir alguma música em inglês sentado no sofá, engolindo o gole direto do gargalo.

Aquele monstro, tanque de guerra defasado, nem ao menos respirou para escancarar a porta do cubículo. Percorreu a sala em silêncio, reparando nas fotografias penduradas nas paredes, nas cores de tintas desgastadas que caíam do teto, nos restos de jornais e revistas sete meses atrasados e jogados num dos cantos, num buquê de flores quase mortas que ocupava o lugar onde deveria ficar parada uma televisão, deixando brilhar dourado o prateado de uma pistola presa na cintura, sob a luz amarelada que jazia da lâmpada do teto, e sempre em silêncio.

No sofá, jogado como os jornais, jazido como a luz da lâmpada do teto, quase morto como as flores, num olhar amarelado como os que assistem televisões, sem nenhuma surpresa, a garrafa de vinho das mãos à boca, permanecia parado ali o homem que pagava o aluguel do citado imóvel.

O Monstro e o Inquilino.

Olharam-se, um na testa e o outro no nariz do primeiro.

O do sofá reparava agora no sapato lustrado preto, na calça de linho preta e no terno de linho preto daquele elefante branco italiano parado em sua sala, vestindo alguma camisa branca que separava o pesadelo do horror. Escutava cada silêncio que o monstro provocava e sentia nos pelos do braço o ar que seus pensamentos deslocavam.

Tensão.
Silêncio.
Silêncio.

Um grito: apontando a pistola ao meio dos olhos do que estava sentado, disse o Monstro: “Estou sempre por aqui, porra!!!”, quase chorando.

Um sussurro, vindo do sofá: “Eu também...”, muito tranqüilo.

Como em todas as noites, o tiro disparou, as mãos trouxeram à boca o vinho, e tudo o que havia ali despareceu.

É estranho ouvir tanto barulho lá fora. Ônibus, caminhões, sirenes, buzinas, a confusão sonora dos passos de tantas gentes batendo pés nas ruas, as vozes todas de milhares de pessoas que se abafam no ar, mas chegam até aqui na janela. Um constante que grita durante todo o dia, tão forte que até no silêncio nossos ouvidos o enxergam, durante uma ou duas horas mais.

À noite a paz é outra. Percebo daqui toda a individualidade de cada bêbado que grita nas ruas. Sinto no peito toda a pressa do pouco barulho que os pneus dos poucos carros gritam no asfalto, sinto todo o silêncio que as poucas e sofridas árvores despejam nos ares, quietas e também nos asfaltos.

As lâmpadas amareladas e as fluorescentes, os postes cobreados, o pisca alerta de um carro encostado na calçada de uma rua deserta, o extremo incandescente de um cigarro nas mãos de um solitário andarilho das madrugadas, a própria garoa que cai em caleidoscópio e luta contra o vício desse fumo e de todos os outros, até os vultos mesmo, não percebo senão nessas horas.

Cá dentro, uma televisão, servindo de lanterna, contorna minha silhueta na janela. Um gole quente que mata o frio que mata tantas criancinhas lá embaixo. Os pensamentos de lutas vãs que sempre começaram e se acabaram em lágrimas. Um chão de teto que não me deixa fugir. Paredes onde desenho alguns sonhos com os olhos abertos.

O chão é convite. Observo o teto ali deitado e ele não conversa comigo. Ouço, novamente, o som da noite. Garrafas quebradas e briga no bar. Sede. Cedo.

Sentado no sofá, observo meus sapatos no canto, finalmente parados. Procurei meus olhos no espelho do banheiro e não os encontrei e nem sapatos algum. E nem olhos e nem pernas, como se fosse eu o próprio prédio e meus olhos as janelas, e naquele apartamento estava meu coração, não tinha onde mais estar.

É estranho ouvir tanto barulho pela manhã, todas as manhãs. Descer o elevador com cara de poucas conversas. Um bom dia e um resmungo, talvez. O tique e taque tique e taque tique e taque batendo na testa e fazendo lembrar cada segundo dessa festa sem bebidas que são os dias. Angustiante.

Minhas caixas, potes e cartelas de comprimidos sorriem à hora que a aurora invade a janela e toca meu corpo. Um banho, um café amargo da manhã vitaminiquímico.

Outro banho no fim do tarde, pra acordar e limpar toda a sujeira do martela carimbo do dia. Volto à janela outra vez, outra noite.

E a outra noite vai e os gritos são os mesmos, mas os bêbados são outros, assim como as luas.
Dentre as garrafas vazias e cheias que estacionam na estante da sala, procuro uma de vinho bom que guardava pra uma noite especial. Noite de lua cheia e amarela e, que mentira!, até com estrelas!! E... que ilusão! Não há estrelas e a lua é prata refletindo as luzes da cidade e nem a noite é especial, não espero por isso. O melhor vinho do pedaço largado e maculado em minhas mãos. Aos melhores goles servirão, que os meus não são em vão. Sangra minha garganta em cada trago. A cada trago estanca minha garganta.

Calculo como mente analfabeta as equações da vida. Olho como quem da janela os movimentos da avenida. Lembro como quem lembra com saudades daquela infância tão querida. Esqueço, mesmo que seja bela, qualquer imagem desta vida.

Calo meus pensamentos, não há o que sonhar. Calo meus movimentos, não há pra que lutar. Calo meus sentimentos, não há por que chorar. Falo o meu silêncio, que não há nada o que escutar.

O sono...

sexta-feira, abril 20, 2007

Outro:


Outro som que faz bem.
E estou nessas mesmo.

Coisa toda.


Não suporto mais essa coisa toda!

Só um pouco, mas tá enchendo!

...


Eu sempre parava aqui.

Faz bem.

Agora a vida me tomou.
Não há tanto tempo...

É bom passar por aqui.

Depois de quatro garrafas solitárias, ao menos.

Depois de escrever alguma coisa que eu (quase) nunca posto hoje.

É mais pelo som que eu paro aqui.

Esse som faz bem: