quinta-feira, março 19, 2009

O Cerne



Aprendi, há muito tempo, ainda em minha mocidade, que não devemos abordar um assunto diretamente no seu cerne. Na verdade, não aprendi, apenas ouvi alguém dizer. Só depois de velho é que cheguei a entender a lição. Aí sim, compreendi a importância da abordagem vagarosa que deve ser utilizada em qualquer tipo de questão. Abordagem daquela que vai apreciando pelas bordas qualquer tipo de matéria, que mastiga bem e devagar as idéias pensadas, e que as digere com calma antes de expelir qualquer opinião. Não que agora eu consiga fazer dessa prática um hábito, muito menos especialidade. Mas, quando alcanço tamanho grau de paciência, exulto em meus ânimos de tão satisfeito.

Como já disse, essa não foi lição aprendida numa tacada só. Foi absorvida com o passar dos anos de forma quase que imperceptível. Depois de cada erro, de cada equívoco, de cada ilusão, de cada decepção, durante décadas. Havia sempre, no meu tempo passado, a pressa do jovem, a necessidade da definição rápida de toda e cada situação, da resolução imediata de todos os problemas. Quem dera eu já soubesse que são poucas as situações que se definem e que muito menos são os problemas que se resolvem. Mas isso faz parte da vida, nunca tivemos nenhum manual para aprendê-la e, se tivéssemos, provavelmente não nos disporíamos a estudá-lo.

Mas essa conversa talvez pareça papo de velho saudoso. Qualquer jovem sabe que tudo nessa vida é possível, e que as oportunidades abundam por aí para serem agarradas, basta querer, e que não há tempo para ter paciência e que devemos simplesmente passar por cima de todas as desilusões. Está bem fácil a vida nesses dias que ainda insistimos em viver.

Hoje sobram os manuais. Em qualquer livraria encontramos resumos de todas as histórias e conselhos que escutamos de nossos avós, sentados na porta de casa pra fora, quando ainda éramos crianças. Antigamente poderíamos ser médicos, professores, metalúrgicos ou continuar roçando. De uns tempos pra cá inventaram tantos problemas que existem mais profissões para resolvê-los do que gente capacitada para exercê-las. Misturaram até misticismo com medicina e inventaram a futurologia das doenças e deram o nome de genética. No meu tempo qualquer doença tinha apenas dois futuros possíveis: a cura ou a sepultura. Hoje nenhuma pressa se salva, moramos a cinco quarteirões de distância do compromisso e ainda atrasamos por causa do trânsito. Naquela época os quarteirões tinham a distância de sítios e eram medidos em alqueires. Íamos a pé por uma estrada de terra batida e ainda chegávamos a tempo para o café da manhã. Ah, sim! O café da manhã era coisa de bons dias e não de boas tardes como acontece hoje. Lembro que na minha infância uma arroba era um fardo triste de se carregar. Hoje ela não passa de um pouco de tinta pintada numa pequena tecla do computador dos meus netos, e se apaga em alguns dedos de conversa. E eles, meus netos, que graça, me ensinam tanta coisa! Eu, na idade deles, só fazia resolver problemas de aritmética pro colégio e calar ouvindo as histórias de meus avós todas as noites, menos em dias de missa, que eram dias de guarda.

Minha velha se entende melhor com essa modernidade toda. Só a chamo de minha velha porque é minha mesmo e pelas contas da idade. Perto de mim ela é ainda uma criança bem esperta. Eu não passo de um velho com o olhar perdido naquele horizonte que está por vir. Ela senta em frente àquela máquina de computador e vai acreditando nas coisas que aparecem. Descobre uma receita pra emagrecer e me conta, e eu respondo que já não precisa mais, que o amor que sinto por ela já está incrustrado feito vida em mim. Depois ela tenta me mostrar o mapa da rua que a gente mora, com fotografia e tudo, e eu pergunto qual a utilidade de um mapa que mostra o lugar onde já estamos e não aquele para o qual queremos ir. Ela me pergunta aonde quero ir e eu respondo que não sei, que provavelmente queira ficar por aqui mesmo, e volto atrás e entendo a utilidade do tal mapa. Daí ela vem e diz que a gente pode conhecer o mundo todo por ali e tenta, de novo, me mostrar as fotografias do que existe porta afora. Eu finjo que olho, faço que vejo, mas minhas lembranças me sequestram. A única coisa que enxergo é a recordação que tenho da primeira vez que fui até o alto da serra que ficava atrás do nosso sítio, há muito tempo atrás. Enxergo apenas aquele imenso horizonte que ainda deve estar por lá. E as lágrimas voltam aos meus olhos velhos e secos só de lembrar que um dia o mundo afora foi somente tudo aquilo ali.

Entendi, agora há pouco, já nessa velhice, que não devemos ir tão fundo, tão no cerne das questões, assim, de uma vez só, se não quisermos ter os olhos marejados. Mesmo assim, insisto. Não compreendo toda essa pressa moderna, assim como não fazia idéia e nem pensava sobre o por quê de tanta pressa eu mesmo tinha quando jovem. Enfim, dessa coisa de modernidades, uma por outra, prefiro a minha, a velha. Que é o que todos buscamos, mas só percebemos quando o tempo passa. É vagarosa essa coisa, o cerne do que somos.

sexta-feira, março 06, 2009

Eu e o macaco.



Nenhuma percepção de mundo é perfeita, completa. A minha, garanto, é falha, é meia. Culpa minha, claro. Não tenho o olho direito por um equívoco que cometi. Uma macaco o arrancou, desses macacos de programas de televisão e circo.

Estive num desses eventos e, no fim do espetáculo, quis conhecer os bastidores. Ele estava solto e quieto, agachado em um pequeno banco, com as mãos dadas entre as pernas. Observava o movimento, distraído. Cheguei perto me abaixei e olhei nos olhos dele, que me responderam. Disse em voz alta, para que ele entendesse, que queria descobrir no que estava pensando. Estavam marejados e eram profundos e misteriosos, surpreendentes, fascinantes. Pareciam humanos e acho que quase conseguiria penetrar em seus pensamentos. Não imaginava que tal atitude, fitar assim procurando desbravar e conhecer, não era bem-vinda entre macacos. Foi tarde quando percebi a imensa ira que emergia do mar de seus olhos, não tive tempo de esquivar. Um guincho e dois dedos em meu olho direito.

O que fiz, para ele, o macaco, era agressão. E ele me respondeu. Socorreram-me ao hospital, pagaram-me indenização e tudo o mais que situações desse tipo exigem.

Demorou um pouco, mas consegui me acostumar com essa situação quando finalmente percebi que essa falha e meia percepção, a da falta do olho e do olhar completo, já era corrente em meu viver. Isso foi a tempo de livrar o macaco do sacrifício. Até pensei, durante dois ou três minutos, em adotá-lo. Era o macaco que abriu meus olhos para o que não viam! Mas logo percebi que poderia estar errado. Minha percepção das coisas continuava a mesma, falha, e, afinal, nunca sobe de ninguém que tivesse entendido as motivações e intenções de nenhum macaco. De baleias e golfinhos, talvez, mas essas são fáceis. Macacos são mais complexos. Eles têm olhar e lacrimejam. Resolvi não arriscar. Depois de participar de alguns programas de televisão foi lacrado em um zoológico e não soube mais dele.

O lugar onde deveria estar meu olho direito é feio, pra quem olha. Tem uma prótese, não outro olho artificial, apenas um material que isola e protege o oco da minha cabeça. Às vezes, no espelho, lembro que me assombrei com a profundidade do olhar do macaco... O meu, agora, é muito mais profundo. Ao menos o olhar direito.

Mantive meu emprego na mesma empresa, mas não com a mesma função. Antes vendia sapatos, ou calçados, que não eram somente sapatos. Agora trabalho no estoque. Não disseram a razão, mas eu vejo, no espelho. Essa mudança não me abalou, embora não possa negar que gostava muito mais e até sentia prazer em trabalhar na loja. Era bom. Atendia a freguesia e sempre tentava adivinhar qual era o gosto do cliente. Um sapato, um tênis, uma sandália. Algo confortável, algo barato. A cor, o modelo. Alguns tinham vergonha dos pés e do chulé. Apareciam, claro, pessoas com pés realmente feios e outras com pés muito bonitos também. Mas não era para julgar esse tipo de coisa que eu estava lá. Estava lá para ajudá-las. Imagino o que seria se um veterinário tivesse medo ou não gostasse de certa raça de certo animal; ou se um médico tivesse fobia a sangue; ou se um contador, sendo pessoa de números pelo ofício, tivesse medo deles; ou se uma pessoa de letras, e sendo-a pela vida, tivesse pavor de palavras feias ou erros de ortografia. Imagino o que seria... É como se um piloto de avião tivesse medo das alturas e como se ele nunca tivesse pesquisado sobre grandiosos acidentes aéreos que se resumem ao mínimo, ao chão. Eu era um vendedor de sapatos e estava preparado para as tragédias do meu ofício. Quanto ao chulé, para animar o cliente, eu sempre lembrava que nós, vendedores de sapatos, também o temos, e geralmente mais forte e difícil de suportar, pois nossos narizes, de tanto trabalhar, já estavam calejados, tinham perdido a sensibilidade.

Eu gostava, era bom trabalhar na loja. Agora estou no estoque, e sem um olho. E são tantos pares... tantos pares... Isso dói às vezes. Quando o movimento está fraco e eu fico com poucas demandas no estoque, olho para aquelas caixas, uma por uma com a certeza de que há sempre um par em cada uma delas. Sempre. Nunca um trio e nem um sólo. Sempre um par. Daí eu penso em para quem este mundo é feito. Não para mim ou pessoas como eu, tenho certeza. Se a pessoa não tem uma perna, pagará o dobro quando comprar um sapato ali na loja. Eu, pelo menos, posso aproveitar as duas lentes de contato. São muito mais econômicas, dessa forma, e eu não quero usar óculos, seria ridículo. Mesmo que fossem escuros e escondessem minha cavidade direita. Na minha visão seria, a lente direita, uma redundância.

Me perdoe, queria dizer uma coisa e uma coisa sempre puxa outra e que tenham paciência as pessoas mais objetivas, que é isso que sempre dizem e todos sabem. Comecei dizendo que nenhuma percepção é perfeita, completa. Foi isso o que comentei com um cliente esta manhã, na loja de sapatos. Sendo estoquista, não tenho certeza se é essa, a palavra estoquista, a que designa minha profissão, e nem se é essa, a profissão, minha vocação, mas é isso que sou, por enquanto, para todos os efeitos. Voltando: sendo estoquista, por profissão, sou o responsável de trazer os pedidos das caixas de pares de sapatos do estoque à loja. Alguns deles, os clientes, que é profissão de todos sermos clientes de alguma coisa. Alguns deles, como dizia, saem correndo, horrorizados, quando me vêem; outros apenas desistem da compra e saem devagar; alguns fingem que não viram que viram a falta do meu olho direito no lugar direito onde ele deveria estar; existem os que nem percebem essa falta. E teve esse que reclamou que eu trouxe a caixa com o par de sapatos de número errado. Talvez não coubesse no pé dele. Fez um escarcéu, me chamou de caolho e essas coisas. Não respondi. Não pelo emprego, não tenho medo de perdê-lo. Trabalho muito bem no estoque. Não respondi apenas porque pensei que a vida daquele homem devia estar um inferno, e eu não queria piorar isso. No fim das contas, quando meu gerente veio socorrer o cliente, eu trouxera o número certo. Ele é que tinha a vista e a vida ruim por conta da idade ou da vida mesmo e enxergou o que não era. Foi nessa hora que fiz esse comentário sobre essa coisa da percepção. Ele desistiu da compra, disse que aquilo era uma absurda falta de respeito e foi embora. Pensei por um instante em ir atrás dele e me desculpar, mas instante depois achei melhor que não. Nossa percepção nunca é perfeita, e a minha, pra piorar, é falha e meia. Achei que não.

Sempre soube de muitas pessoas que tentaram entender as motivações e intenções dos seres humanos. Até de baleias e golfinhos. Mas os seres humanos são mais complexos. Têm alguma coisa que, até se tivéssemos um olho a mais, não conseguiríamos enxergar. Não sei e nem ouvi falar de ninguém que tivesse conseguido. E, além disso, não podia me preocupar com essas coisas, tinha mais cinco caixas de pares de sapato para descer do estoque.