quarta-feira, agosto 19, 2009

Porque a miséria está à mesa... ainda!

Por faltar tempo e tempo e inspiração pra escrever qualquer coisa, deixo aqui algo que deveria estar já tem um tempo.

É o texto do sobre a atual peça da : Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação Paraíso.




Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação Paraíso

Densidade.

Quando penso no espetáculo, é a primeira qualidade que me vem à mente. Sim, porque Terror e Miséria... é sobretudo densa. Porque a realidade, se você sai do mundinho de TV e de tudo que a mídia dominante impõe, é isto. E também surreal. A melhor definição que se pode ter do Brasil em duas palavras: "real" e "surreal".

E é isto que nos oferece a Cia. Antropofágica em seu novo espetáculo. Cada vez mais ácidos. E não podia ser de outro modo. Porque as relações de poder, desde o período colonial, nesta terra, sempre foram brutais. Não é exatamente o que se sabe dos livros oficiais de escola. Mas quem sabe, sabe. Ou não imagina, ainda que pense que sabe, da missa um terço. E se delicia com a desgraça. A própria desgraça - o veneno que é a realidade, tudo o que nos corrói os interiores. Deliciosamente.

Muito está ali, nunca de um modo linear: a chegada lusitana - melhor dizendo, da escória lusitana; como se deram as primeiras relações com os nativos do novo mundo - estupro mental, espiritual e físico; a figura da igreja; mitos e símbolos expostos ao escárnio; a [falsa] inclusão social; a tragédia da (des)educação; as decisões políticas; o futebol; a influência externa. Há uma alternância de "climas". Pode ser uma alegria sádica de desnudar a alma de uma nação que se construiu a partir de seus vícios. Pode ser a sombria hecatombe, a miséria de existir em tal contexto.

Num dado momento, o público é chamado a participar: como num reality show, tem de decidir quem será "salvo". Num vídeo, transeuntes são questionados sobre a liberdade. As respostas são limitadas. O populacho se embaraça. A visão de liberdade é sempre a partir de um ângulo pobre. Noutro vídeo, uma apresentadora infantil de programas infantis canta o índio brasileiro. Quis rir. Ou chorar seria mais apropriado?

Noutro instante, Joaquim Silvério dos Reis, o traidor, surge expondo as vísceras da Inconfidência Mineira e também nossa ignorância crônica. Zé Carioca morre e é condenado ao inferno. E há sempre uma cartomante de palavras esperançosas. Afinal, como dizia aquela campanha, o brasileiro não desiste nunca.

O trabalho dos músicos tem de ser ressaltado, também, pois não se poderia imaginar o espetáculo sem a intervenção musical consistente que já é característica da Cia. Neste momento mesmo, em que digito estas linhas, parte da trilha toca em minha mente.

Se em outras ocasiões, esses antropofágicos foram buscar referências na tragédia grega, nos contos de fada ou no cinema de Buñuel, agora é diferente. A peça é fruto de um trabalho árduo em que as referências surgem do cotidiano e de uma história nada gloriosa.

A visão de paraíso sucumbe em festa. Horror em progresso. Quero vê-los de novo, antes que termine a temporada, em 27 de setembro. E penso que muito mais gente deveria vê-los.

Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação Paraíso

Ficha Técnica
Dramaturgia: Cia. Antropofágica
Roteiro e direção: Thiago Reis Vasconcelos
Direção musical: Lucas Vasconcelos
Músicos: Bruno Miotto (bateria), Bruno Motta (violão), Frederico César (clarinete) e Lucas Vasconcelos (piano e acordeon)
Elenco: Alessandra Queiroz, Andrews Michel, Clayton Lima, Daniela Leite, Danilo Santos, Fabi Ribeiro, Flávia Ulhôa, Gilberto Alves, Haroldo Stein, Martha Guijarro, Raphael Gracioli, Renata Adrianna, Ruth Melchior, Thiago Calixto, Valter Paulini.

Local: Saibam mais aqui.

Beijos e abraços, povo vicioso de uma nação viciosa!



Preços: R$ 5,00 (sexta) e R$ 10,00 (sábado e domingo).
Datas: 24 de julho a 27 de setembro de 2009.
Horários: Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 19h.

domingo, agosto 09, 2009

Paraíso


1 – É um lugar estranho...
2 – É? Por quê?
1 - Não sei se sei dizer. As pessoas que vivem por lá têm estranhos desejos e um incoerente orgulho de serem tudo aquilo que, parece-me, na verdade detestam.
2 –Como se chamam? Como são?
1 – São Pedros, Josés, Marias, Joões. São bobos, corintianos ou flamenguistas. São pobres soberbos, e os ricos conseguem sempre comprar alguma humildade. Uma imensa maioria é desnutrida de carne, de conhecimento, de cultura, de plena liberdade, de saúde, e são sempre furtados às oportunidades de melhoria de vida. Porém, a imensa minoria que resta serve para equilibrar a balança.
2 – E vivem todos nesse mesmo lugar? Não é incoerente? Vivem em paz?
1 – Sim, todos no mesmo lugar, chamam-se de brasileiros. É incoerente, sim, que vivam todos, assim tão diferentes, nesse mesmo lugar; ou ao menos que acreditem que vivam todos juntos. E não é exatamente em paz que vivem, é outra coisa.
2 – Que coisa?
1 – já sentiu dor alguma vez?
2 - Sim, já.
1 – É mais ou menos isso, uma dor. É como quando se sente uma dor e lhe aplicam uma anestesia. Não fosse isso, a dor continuaria, a causa permanece. É quase isso o que têm parecido com paz, um anestésico.
2 – E por que não atacam diretamente a causa em si?
1 – Eles não sabem.
2 – Não sabem resolver o problema?
1 – Nem conhecem os problemas.
2 – Não conhecem?
1 - Pensam que sim, mas não. Quero dizer, alguns sabem sim quais são os problemas e têm até diversas idéias de como resolvê-los.
2 – Não é de todo mal, esses alguns podem compartilhar suas idéias com os demais.
1 – Não é assim tão fácil.
2 – Mas se soa idéias para acabar com a causa da dor...
1 – É que para lutar contra a dor é preciso senti-la, e são poucos os dispostos a abrir mão dos anestésicos.
2 – Então não é tão fácil mesmo.
1 – Não, não é. Mas creio que não seja problema tão grande. Eles se amam.
2 – Mesmo com todas as diferenças?
1 – Mesmo assim. Aqueles poucos, é claro, estão satisfeitos em manter a mesma e melhor situação possível para o próprio grupo. Os outros, por incrível que pareça, chegam até a sentir orgulho por terem sofrido tanto a vida inteira e por terem criado seus filhos de forma que possam perpertuar seus valores; valores construídos como subterfúgios ao sofrimento. Eu disse que era um lugar estranho.
2 – Muito estranho.
1 – Mas está tudo bem. Fica tudo bem para eles se no meio disso tudo aparecer na televisão algum outro brasileiro com o qual se orgulhar. Não importa se esse outro brasileiro é campeão mundial de retórica ou se ele apenas sabe chutar um coco. Se um deles morre e se torna notícia internacional, então, é uma comoção geral.
2 – Esse é o caso dos anestésicos...
1 – Parte pequeníssima do caso.
2 – Muito estranho mesmo.
1 – Eu disse.
2 – E as praias de lá?
1 – Ah, rapaz, são lindas! Cada mulherão! Aquele lugar é um paraíso!!!