Por faltar tempo e tempo e inspiração pra escrever qualquer coisa, deixo aqui algo que deveria estar já tem um tempo.
É o texto do
Alessandro sobre a atual peça da
Cia. Antropofágica: Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação Paraíso.
Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação ParaísoDensidade.
Quando penso no espetáculo, é a primeira qualidade que me vem à mente. Sim, porque Terror e Miséria... é sobretudo densa. Porque a realidade, se você sai do mundinho de TV e de tudo que a mídia dominante impõe, é isto. E também surreal. A melhor definição que se pode ter do Brasil em duas palavras: "real" e "surreal".
E é isto que nos oferece a Cia. Antropofágica em seu novo espetáculo. Cada vez mais ácidos. E não podia ser de outro modo. Porque as relações de poder, desde o período colonial, nesta terra, sempre foram brutais. Não é exatamente o que se sabe dos livros oficiais de escola. Mas quem sabe, sabe. Ou não imagina, ainda que pense que sabe, da missa um terço. E se delicia com a desgraça. A própria desgraça - o veneno que é a realidade, tudo o que nos corrói os interiores. Deliciosamente.
Muito está ali, nunca de um modo linear: a chegada lusitana - melhor dizendo, da escória lusitana; como se deram as primeiras relações com os nativos do novo mundo - estupro mental, espiritual e físico; a figura da igreja; mitos e símbolos expostos ao escárnio; a [falsa] inclusão social; a tragédia da (des)educação; as decisões políticas; o futebol; a influência externa. Há uma alternância de "climas". Pode ser uma alegria sádica de desnudar a alma de uma nação que se construiu a partir de seus vícios. Pode ser a sombria hecatombe, a miséria de existir em tal contexto.
Num dado momento, o público é chamado a participar: como num reality show, tem de decidir quem será "salvo". Num vídeo, transeuntes são questionados sobre a liberdade. As respostas são limitadas. O populacho se embaraça. A visão de liberdade é sempre a partir de um ângulo pobre. Noutro vídeo, uma apresentadora infantil de programas infantis canta o índio brasileiro. Quis rir. Ou chorar seria mais apropriado?
Noutro instante, Joaquim Silvério dos Reis, o traidor, surge expondo as vísceras da Inconfidência Mineira e também nossa ignorância crônica. Zé Carioca morre e é condenado ao inferno. E há sempre uma cartomante de palavras esperançosas. Afinal, como dizia aquela campanha, o brasileiro não desiste nunca.
O trabalho dos músicos tem de ser ressaltado, também, pois não se poderia imaginar o espetáculo sem a intervenção musical consistente que já é característica da Cia. Neste momento mesmo, em que digito estas linhas, parte da trilha toca em minha mente.
Se em outras ocasiões, esses antropofágicos foram buscar referências na tragédia grega, nos contos de fada ou no cinema de Buñuel, agora é diferente. A peça é fruto de um trabalho árduo em que as referências surgem do cotidiano e de uma história nada gloriosa.
A visão de paraíso sucumbe em festa. Horror em progresso. Quero vê-los de novo, antes que termine a temporada, em 27 de setembro. E penso que muito mais gente deveria vê-los.
Terror e Miséria no Novo Mundo - Parte 1: Estação Paraíso
Ficha Técnica
Dramaturgia: Cia. Antropofágica
Roteiro e direção: Thiago Reis Vasconcelos
Direção musical: Lucas Vasconcelos
Músicos: Bruno Miotto (bateria), Bruno Motta (violão), Frederico César (clarinete) e Lucas Vasconcelos (piano e acordeon)
Elenco: Alessandra Queiroz, Andrews Michel, Clayton Lima, Daniela Leite, Danilo Santos, Fabi Ribeiro, Flávia Ulhôa, Gilberto Alves, Haroldo Stein, Martha Guijarro, Raphael Gracioli, Renata Adrianna, Ruth Melchior, Thiago Calixto, Valter Paulini.
Local: Saibam mais
aqui.
Beijos e abraços, povo vicioso de uma nação viciosa!
Preços: R$ 5,00 (sexta) e R$ 10,00 (sábado e domingo).
Datas: 24 de julho a 27 de setembro de 2009.
Horários: Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 19h.